Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
A noite estava quente. Roberta lambeu o sorvete de morango com brejeirice de colegial, passeou graciosamente a língua pelos lábios e disse:
“O primeiro, quero saber sobre o primeiro.”
“O primeiro?”
“Sim, o primeiro, quero saber sobre o primeiro poema que você escreveu.”
Ele a olhou fixamente. Imaginou quão inspirador seria provar o gosto de morango nos tentadores lábios de Roberta. Controlou-se. Sorriu e disse:
“Faz tanto tempo! As rosas que agora estão abertas ainda eram botões.”
“Tente se lembrar pelo menos de alguns versos”, ela insistiu, “não precisa ser o poema na totalidade.”
“Faz mesmo muito tempo”, ele repetiu, “recordo-me que, foi em uma queda e fria noite que escrevi meu primeiro poema.”
“Ah, por favor, tente se lembrar” ela disse, delicadamente, “ao menos um verso, é importante pra mim.”
Ele cerrou os olhos por um instante e disse:
“Os camaleônicos olhos negros são verdes como florestas e azuis como o mar. Os olhos de camaleão são festas camaleônicas que lindamente flutuam no ar”, fez uma ligeira pausa, abriu os olhos e declarou, “é tudo o que consigo recordar de meu primeiro poema.”
“E o título, lembra-se do título?”
“Olhos de Camaleão.”
“É lindo, tem certeza de que o poema não está por aí, escrito na íntegra em um papel esquecido no fundo de alguma gaveta ou no bolso de um paletó que você nunca mais usou?”
“Já procurei em todas as gavetas e bolsos possíveis, procurei até mesmo nos arquivos de minha memória”, ele disse, “vã procura, o poema Olhos de Camaleão está muito bem escondido.”
“Se está escondido, não está desaparecido”, ela ponderou, “o poema não está morto, ele vive, ainda existe!”
“Quando o desenhei com palavras, ele já existia, e continua existindo, poemas são imortais, podemos apagá-los do papel, da areia ou de qualquer outro lugar, mas, jamais matá-los”, ele disse, “todos os poemas, mesmo os que ainda não foram registrados com palavras existem desde sempre e para sempre existirão; os que ainda não foram escritos estão impressos na pele do tempo, à espera que alguém os capture, poetas são para-raios que captam poemas.”
“Então... você pode recapturar Olhos de Camaleão?!”
“Sendo você minha musa, posso recapturar Olhos de Camaleão, e capturar muitos outros poemas que estão no ar, na água, no fogo, na terra, nos dois extremos e em tudo que habita entre os dois extremos; o universo é feito de camadas de poesia, como uma doce e suave cebola poética.”
Passaram-se décadas, ele escreveu vários poemas para Roberta – seu amor, musa e esposa. E mantiveram o hábito de tomar sorvetes nas noites quentes.
Estive com o poeta e com Roberta há poucos dias. Ele finalmente recapturou, décadas depois e na íntegra, Olhos de Camaleão. E me garantiu:
“O poema Olhos de Camaleão só será publicado com a permissão de Roberta, recapturei o poema só para minha amada, ele pertence a ela.”