Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Ferdinando Cataclismo queria dormir um pouco mais, mas o barulho da cidade soava impiedoso dentro de sua cabeça. O gosto das caipirinhas que engolira no início da madrugada ainda permanecia na boca. Sentou-se na cama e imaginou o juízo final como única libertação possível; era torturante a sensação de estar no vale de lágrimas que as pessoas chamam de Planeta Terra.
Encaminhou-se ao banheiro. Ao sentir o contato da água fria que saía da torneira, disse um impropério, desses que as pessoas proferem como desabafo e não por ira. O compromisso da manhã era providenciar carne e legumes. Decidiu ir a pé ao supermercado mais próximo – que na verdade não ficava tão próximo -, assim, além de fazer exercício físico, economizaria combustível.
Quando pisou na calçada da rua, uma motocicleta passou fazendo ensurdecedor barulho. Disse outro impropério, desta feita, mais próximo da ira que do desabafo.
“Preciso me controlar”, disse para si mesmo, e completou, “o diabo está sempre de plantão, tentando fazer com que os homens se desviem do caminho reto.”
Esbraveceu quando, ao cruzar a pracinha, tropeçou em uma pedra solta e quase foi ao solo. Controlou-se. Precisava acostumar-se à ideia de que é preciso uma paciência de monge para viver nos dias que correm. Para que pagar impostos se, por falta de manutenção, até caminhar em uma praça representa perigo aos transeuntes?
Na feirinha do supermercado, Ferdinando Cataclismo encontrou o Adilson e o Duarte, com quem mantinha uma amizade de longa data.
“Grande Ferdinando”, disse o Duarte, “tudo bem com você?”
“Tirando o fato de que há pouco tropecei em uma pedra, está tudo bem”, disse o Cataclismo com sua usual sinceridade.
“Ah, trata-se de uma metáfora!”, exclamou o Adilson, “a pedra à qual você se refere é um problema, como no poema do Drummond, mas... qual é o problema?”
“Tropecei em uma pedra de verdade”, disse o Cataclismo, “podia ter quebrado o pé, e você me vem com essa história de metáfora, que idiotice!”
“Olha o decoro!”, pontuou o Adilson, “até parece o Bolsonaro falando.”
“Bolsonaro?! Aí você me ofende”, protestou o Cataclismo, “eu exijo respeito.”
“Acalmem-se, senhores”, interveio o Duarte.
“Está bem”, disse o Ferdinando, “preciso me controlar, afinal, falta pouco, o mundo vai acabar em 2023.”
“Que história é essa?”, perguntou o Duarte, “onde você ouviu isso?”
“Basta interpretar os sinais”, explicou o Cataclismo, “está claro no Evangelho de Mateus 24,7: Porquanto se levantará nação contra nação, reino contra reino, e haverá fomes e terremotos em vários lugares”, pausa, “só não vê quem não quer.”
“Sim”, concordou o Duarte, “mas um pouco adiante, em Mateus 24,36 está escrito: Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão o Pai”, pausa, “e quem disse isso foi Jesus Cristo.”
“Aposto uma cerveja que o mundo vai acabar em 2023”, disse o Cataclismo.
“Fechado”, disse o Duarte.
Continuaram a conversar. De repente, o Cataclismo disse:
“Espere um pouco, isso foi trapaça, se o mundo não acabar eu perco e pago; se acabar, eu ganho, mas não tenho como receber, você me tapeou.”
“Foi você quem propôs a aposta”, disse o Duarte, “e o Adilson é testemunha, agora é tarde pra desistir, meu caro.”