Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
A tradição do lugar dizia que, na véspera do início de um novo tempo, todos deviam se dirigir à praça central a fim de verificar o telão ali instalado. Ninguém sabia quem instalava o telão, quando a multidão chegava, ele já estava instalado próximo à catedral. Por ser ocasião especial, os habitantes mais abastados do lugar usavam chinelos novos; os humildes, iam descalços. Aqueles cuja visão já se turvara pela ação do tempo calçavam, inadvertidamente, ornitorrincos domesticados. O mais importante era seguir até a praça.
No início da noite, ouviu-se as badaladas do sino: era o chamado oficial. Como fazia há décadas, Álvaro segurou a mão da amada que, fisicamente estava distante. Mas, a distância não impedia o homem de sentir a presença da amada a lhe inspirar vida e colorir de amor cada milímetro do universo. E o casal seguiu rumo à praça.
Junto à catedral, a multidão estava com o olhar fixo no telão que exibia imagens de tempos idos. Sem soltar a mão da amada, Álvaro via a inanição exterminando vidas. Indubitavelmente, o mundo carecia da um antídoto para as dores da alma, um antídoto alternativo, já que a humanidade sempre demonstrara resistência ao uso do amor.
As imagens continuavam a desfilar no telão, e apareciam mensagens apontando o desamor como o causador de dores e sofrimentos. E escancarando a inanição espiritual, torturadores e torturados e algozes e vítimas dividiam o palco na mesma dança macabra.
Finalmente o telão mostrou imagens da multidão reunida na praça; o povo esperou para ver o futuro. Então, surgiu a seguinte mensagem:
O que está por vir é magnífico por seu ineditismo, no porvir não deposito nenhuma expectativa, exceto que seja único e original, não apenas uma réplica do que já foi vivido, se é que existe ou existiu algo que, de fato, tenha sido vivido. Entre a vida e a morte, fico com a incógnita, escolho de bom grado a delícia de ser surpreendido pelo que me espreita no próximo passo. Não vou me inquietar, não quero saber se o sol vai brilhar amanhã, talvez nem haja amanhã; não quero saber o sexo da criança que ainda não veio à luz, talvez a gravidez seja psicológica. Permanecerei quedo, mas ávido por saborear o que virá, se o que virá realmente vier.
Aquele que conseguir viver intensamente como se hoje fosse o último dia a ser vivido, mas com a prudência de quem tem a eternidade para viver, terá encontrado o harmônico equilíbrio.
Não adianta procurar um caminho, pois seu caminho ainda não foi traçado, seu caminho ainda não existe, só você poderá traçá-lo, somente seus passos poderão delinear seu caminho. Se for possível, tomem um chá de cautela antes de cada passo, se não, simplesmente andem, mas com a consciência de que o sentido último do movimento é a imobilidade.
Ousem, meninos, ousem, fujam de convenções, de fórmulas e conceitos preestabelecidos. Sou o guru ideal, o melhor para aconselhar, justamente por não ter conselhos a dar...
E o telão desapareceu. A mensagem que ficou para os homens é de que o futuro está sendo escrito no presente, um futuro escrito a bilhões de mãos, porque todos são escritores do futuro. Quando Álvaro acordou estava sozinho, sentiu décadas de saudade a lhe afligir e lembrou-se da Segunda Epístola de Pedro 3.8: Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia.
Álvaro soluçou. A saudade de um amor distante é como um punhal lancinante!...
*Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal