Numa dessas manhãs de horário de verão, levanto-me da cama e lá fora a luz do poste ainda não se apagou. Nos quintais de alguns vizinhos, ouço galos retardatários cantando melancolicamente para a última estrela da manhã. Isso mesmo! No meu bairro galos ainda cantam, para alegria deste caboclo. Ouvi-los me faz retornar ao passado. Encontro-me em frente ao espelho fazendo barba e pensando na vida.
Quando termino o barbear percebo que uso a mesma água de colônia que usava há muito tempo para passar no rosto. Penso que faço o mesmo gesto há pelo menos 40 anos. A cor do frasco é a mesma, a flagrância é a mesma, só a imagem refletida no espelho mudou.
Sinto uma nostalgia. Percebo que o tempo deixou marcas indeléveis no meu semblante e então meus pensamentos voam para muito além de quaisquer muros e vou ao encontro da realidade da vida: morrer ou envelhecer? Temos escolha? Claro que não!
O poeta Manoel Bandeira, em seu poema ``Preparação para a morte”, diz: “A vida é um milagre/ tudo na vida é milagre/ tudo menos a morte/ bendita a morte/ que é o fim de todos os milagres.”
E é com ela, com a bendita morte, que tudo se renova. São as leis naturais e imutáveis que a elas tudo está sujeito. Quem for espiritualista, como eu, procura se esclarecer para alcançar uma maior evolução.
Não. O tema de hoje não será sobre a morte nem espiritualidade. Porém, sabemos que a morte não interrompe a vida. Que o espírito tem que continuar no espaço infinito para sua evolução, através de sucessivas idas e vindas, tudo para seu aperfeiçoamento. Esse nunca morre, para dar continuidade da vida sobre a matéria.
Continuo viajando por entre jardins e me deparo em pensamentos, exatamente naqueles que se foram sem se deixar envelhecer –foram antes do combinado– e penso nesses velhos camaradas desde os tempos da roça, como também nos meus amigos que vieram depois, eu já morando na cidade.
E os que aqui ficaram, por onde andam?
Onde andarão meus amigos de infância com os quais brincava de bola de meia, de bola de bexiga de porco, de biroca, de salva-pega, balança-caixão, cantigas de rodas e outras brincadeiras mais?
Por onde andarão o Ganso, o Negão –irmão do Ganso–, o Norberto, o Coca, o Neguinho, o Zé do Lazo, o Luiz da Horta, o Zé Orêia, o cumpadi Nerso (não o da Capetinga), o Jão Dedão, o Fiapo, enfim, tantos outros que se perderam pela longa estrada da vida?
E o Zé Carlos, que por ser um pouco mais velho que eu, e meu vizinho, me ensinou a cortar nos galhos da jabuticabeira a melhor “furquia” para fazer estilingue e a buscar no “corgo” saibro para eu fazer pelotas, deixá-las secar ao sol e depois usá-las como munição de caça? Aliás, se pudesse voltar no tempo, essa ação eu não faria de novo. Mas, infelizmente, todos os meninos da minha idade enchiam o “imborná” de pelotas para caçar os indefesos passarinhos.
O meu amigo ensinou-me também a montar e a armar arapucas nos trieiros no meio das “paiadas”. De manhã e à tarde, íamos inspecionar os locais para ver se tinha algum pássaro capturado. Hoje, quando penso nisso, meu coração dói. Mas fazer o quê? Aquilo tudo fazia parte da grande magia de viver na roça. Caçávamos codornas, nambus, rolinhas e demais pássaros para nos alimentar. Aquele ritual fazia parte de uma cadeia alimentar. A vida difícil não permitia a nós, moradores da roça, ter em nossas mesas carne de vaca. Isso era luxo.
O astro Rei começa a dar sinais de vida. O dia está clareando. Eu me distraí diante do espelho por breves momentos. Termino meu barbear, passo a água de colônia no rosto. Hoje, parece que está mais cheirosa, ou fiquei mais sentimental pensando nos meus velhos camaradas?