A colônia em que eu morava, tinha por volta de trinta casas, o lazer de nós crianças era jogar bola de meia no campinho improvisado de terra batida, armar arapucas nas paiadas, tomar banho nos três poçinhos ou jogar biroca. E o lazer dos adultos? Bem, depois de arrancarem as touceiras de pés de milho numa área em frente à colônia com enxadas e enxadões, aplainarem o terreno, cortarem no mato pequenas toras para fazer as traves, estava pronto o campo de futebol. A princípio na terra mesmo, depois com o tempo, a grama Macaé cobriu todo o terreno.
Com o campo pronto e o time formado, os domingos na fazenda tornaram-se por demais movimentados. Vinham times das fazendas vizinhas e também da cidade e, claro, o nosso time também ia a outras fazendas devolver a visita.
Eu estava no segundo ano do primário quando num domingo o nosso time estreou o uniforme novo. Um dos diretores era são paulino, com o dinheiro arrecadado entre os jogadores que até então jogavam sem uniforme, foi até a cidade e claro, comprou o jogo nas cores do seu time.
Para a estréia do charmoso uniforme, foi convidado um time de Rio Preto. Confesso que não me lembro o nome do time, só me lembro do lugar que eles vieram: Morro pelado.
Os moradores da fazenda foram em peso torcer e ver o belo uniforme. Mas para tristeza geral, o nosso time era muito ruim, verdadeiros pernas de paus. Para desespero da torcida e do time, os visitantes do Morro Pelado deram uma lavada de 8x0.
Envergonhado, nunca mais quis saber nem onde ficava o tal Morro Pelado.
Muitos anos se passaram, um dia na Casa de Cultura quando ainda era dirigida pela Dinorath do Valle, fui apresentado por ela ao artista plástico Daniel Firmino da Silva. Nascia ali, uma amizade que dura até hoje.
Perguntei ao Neguinho, era assim que a Dinorath o chamava, onde ele morava? Ele me disse que morava no Morro Pelado. Imediatamente voltei ao passado naquela tarde de domingo da triste derrota.
Hoje, disse-me ele, a grande maioria das pessoas não o chama mais de Morro Pelado, mas, de Vila Elvira.
Daniel Firmino, fanático torcedor do Corinthians, pintou e pinta em todos os ângulos o seu morro pelado. Artista primitivista faz da sua pintura uma bandeira. Seus olhos sensíveis captam a dor e a angústia dos menos favorecidos. As favelas, as brincadeiras no morro, os botecos, seus freqüentadores, a prostituta, o negro. São esses os elementos, a matéria prima que o artista utiliza para compor verdadeiras obras de arte.
Artista autodidata desenvolveu a habilidade do olhar sensível para as coisas duras da vida. Usa as cores com maestria. Quando acha que só com as imagens não se faz entender, usa as palavras. Escreve nas telas mensagens ou palavras de ordem. Aconteceu mais de uma vez, pessoas quererem censurar suas palavras. Mas, Daniel não se importou, seguiu em frente. A arte está acima das pessoas, essas passam, a arte permanece, diz ele.
A obra de Daniel Firmino da Silva atravessou há muitos anos as fronteiras do Morro Pelado. Hoje sua obra está em importantes galerias do Brasil e do mundo, inclusive a Pinacoteca do Estado, mantêm em suas paredes uma obra do nosso rio-pretense.
Toda vez que em eu passo lá pelos altos da Vila Elvira, eu me lembro do antigo Morro Pelado e da coça que o meu time levou lá na fazenda. Eu só te perdôo Morro Pelado porque você deu para o Brasil e para o mundo, Daniel Firmino da Silva e sua arte maravilhosa!