Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Do outro lado da rua, um menino segura o pequeno retângulo de onde escapam ruídos que, equivocadamente, recebem o nome de música.
O ruído liberado pelo retângulo serve apenas para divertir os tolos e ser aplaudido pelos surdos. Quando um pássaro avisou que nos dias que voam é preciso manter viva a coerência, as mentes embotadas nada entenderam. E os sons tornaram-se vazios como discursos de políticos.
No final da tarde, o homem olhava a cena com uma vaga sensação de pesar. Via o menino como quem vê um futuro de rajado desvario. As partículas de poluição pairavam nos espaços como pesada cortina aniquilando perspectivas. De repente, rasgando o véu da poluição vespertina, um fragmento de pensamento atingiu o homem em cheio na boca do estômago, fazendo-o sentir um gosto amargo na boca e uma inquietação na alma.
Fragmento de pensamento: O dinheiro não compra a felicidade, ele compra outras coisas. Esta constatação – indubitável, ainda que implícita – levou a humanidade a tomar a resolução de batizar outras coisas com o nome de felicidade; operando, assim, a primeira experiência de maquiagem da história. Quanto aos sofrimentos da alma, optou a humanidade por deixá-los bem camuflados... Na alma, consolidação histórica da mais ousada das maquiagens. Mas, sempre chega o dia em que a dor rompe o frágil dique de maquiada proteção, e a dor, como um mar bravio, a tudo inunda; é quando a procura pela verdade se faz vital e inadiável...
O fragmento de pensamento foi interrompido quando, repentinamente, a escuridão caiu sobre a cidade. Uma profusão de coriscos cortou as nuvens causando calafrios. Depois vieram relâmpagos, raios, trovões... E a forte chuva desabou. O vento soprou e uivou com tal ferocidade que fez da chuva um fenômeno horizontal.
A visibilidade desapareceu por completo. Tudo desapareceu. A tempestade destruiu as conexões, transformando cada pessoa em um ser isolado. Os homens ficaram desorientados e lamúrias soaram por toda parte. Trôpego, o homem que observava o menino conseguiu atravessar a rua, tateou, caiu, levantou, mas, o menino havia desaparecido. Compreendeu que o dique tinha se rompido e que o dia de lançar-se à busca da verdade finalmente chegara. Lançou-se à tempestade.
Após perambular na tempestade, o homem que procurava a verdade perdeu os sentidos. Acordou no interior de uma construção rústica e circular.
“Você está em uma oca”, disse o velho pajé.
“Como vim parar aqui?”, perguntou o homem.
“Você saiu do nevoeiro, cambaleante, fraco e ferido, desmaiou no centro da aldeia”, respondeu o ancião curandeiro, “há muitos dias está recebendo tratamento com ervas e ungüentos.”
O homem continuou a receber o tratamento. Algumas luas depois, ficou totalmente restabelecido e resolveu fixar residência na aldeia. Descobriu a nobreza na singeleza. A vida simples o cativou. Conheceu diversos cogumelos – comestíveis, tóxicos, e mortais -; mastigou folhas estimulantes e mágicas; fumou cachimbos miraculosos; tomou ayahuasca – santo-daime – e outras substâncias capazes de escancarar as portas da percepção.
O homem não se chama João e a aldeia não é uma ilha chamada Pathmos. Mas, em sua consciência, soou grande voz, como de trombetas, e lhe foi revelado a síntese da verdade: agredir a natureza é agredir a si mesmo, e o retorno ao simples é a única saída.