Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Os bares onde as pessoas se encontravam para falar sobre hermenêutica desapareceram. Melhor dizendo, os bares ainda existem – alguns no mesmo endereço -, mas os temas abordados hoje em dia são superficiais, rasteiros, tolos. Já não frequento bares, pelo menos não com a mesma frequência de outrora, já que, para ouvir besteiras, basta ligar o rádio ou o aparelho de TV no noticiário político.
Estava tomando água de coco em uma esquina da cidade quando a conversa entre dois homens de idade avançada despertou meu interesse. Os dois falavam a respeito da obra Le Discours de la Servitude Voluntaire (Discurso da Servidão Voluntária), do francês Etienne de La Boétie.
“É impressionante”, disse o homem que usava traje esportivo e aparentava ser um pouco mais jovem que o outro, “mas, apesar de ter sido escrito por volta de 1550, o Discurso Sobre a Servidão Voluntária continua atual.”
“Algumas coisas não mudam”, disse o homem mais velho, o que usava roupa social, “de fato, até os dias de hoje, cega e voluntariamente, a multidão continua aceitando passivamente a condição de servidão.”
“La Boétie concluiu que, mesmo podendo escolher entre ser livre ou súdito, o povo acaba por rejeitar a liberdade e aceitar o jugo.”
“Sim, parece incoerente, mas a verdade é que o tirano ascende ao poder com a conivência do próprio povo subjugado que, invariavelmente, nem se apercebe disso.”
“O autor descreve três tipos de tiranos: os que chegam ao poder pelas armas, os que herdam o poder por sucessão e os que chegam ao poder através do voto popular.”
“E para La Boétie, o tirano eleito pelo povo, uma vez no poder, decide a não mais abrir mão da rês pública, e pior, considera que o poder que lhe foi confiado deve ser transmitido aos seus filhos, e para conseguir tal intento, esse tipo de tirano é capaz de promover os piores vícios e praticar as mais vis crueldades.”
“Uma coisa é certa, todo tirano busca aniquilar a ideia de liberdade do espírito do povo, desmantelando, paulatinamente, a educação e tudo que possa promover o crescimento intelectual e desenvolver o senso crítico dos indivíduos.”
“É possível perceber que os dois métodos que La Boétie descreve como meios para fazer o povo se sujeitar continuam os mesmos: o povo é forçado ou é iludido.”
“E por hábito ou covardia, abraça a servidão voluntária.”
“Sem dizer que é muito fácil esvaziar um homem, basta enchê-lo de distrações rasas, de maneira que não fique espaço para virtudes e verdadeiras relevâncias.”
A conversa estava interessante. Pedi outra água de coco. Foi então que o homem mais velho perguntou:
“Mudando de assunto, qual é sua definição para crise econômica?”
“Bom, para fugir do lugar-comum do dicionário, diria que é o momento histórico em que todos querem vender tudo, mas ninguém pode comprar nada.”
“É uma boa definição, de minha parte, pressinto um momento crucial na história”, disse o mais velho, sacou a carteira e mostrou duas cédulas de cinquenta, “não tenho andado com mais de cem reais, estou treinando para viver com privações.”
O homem das cédulas de cinquenta era uma figura conhecida na cidade, homem de posses, tinha vários imóveis alugados, diversas propriedades, ações e dinheiro no banco. Paguei os dois copos de água de coco, atravessei a rua e senti o forte calor do inverno. Restava aguardar o frio do verão. Não adianta mesmo procurar coerência nos dias de hoje. Há sempre o momento em que tudo se esvai como fumaça.