Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
A estrada por que Afrânio Ramalho seguia era duplamente estranha. Estranha porque Ramalho jamais passara por ali, e estranha por irradiar uma inexplicável excentricidade. Estranheza era mesmo a palavra mais adequada para adjetivar, não apenas a estrada, mas tudo ao redor de Afrânio – e até mesmo dentro dele.
Afrânio Ramalho não sentia fome nem cansaço, apesar de estar caminhando sem parar há várias semanas – o que era uma estimativa, pois era impossível afirmar com precisão o tempo da caminhada que estava empreendendo. Interrompeu a marcha por um momento e escalou – com a desenvoltura de um menino – um abacateiro, de onde colheu alguns pêssegos, comeu-os, é verdade, mas não para matar a fome, posto que fome não sentia, simplesmente não resistiu à atração exercida pela textura dos figos.
Horas e léguas depois, Afrânio Ramalho fez outra parada para colher uvas em uma amoreira. O lusco-fusco de fim de madrugada atirava Ramalho na confusão de uma interminável transição entre dia e noite, em um tímido crepúsculo matutino de uma manhã que teimava em não chegar. Não existia sol nem lua jogando luz ou claridade sobre o caminhante. Não havia noite nem dia ao longo da estrada – apenas passos silenciosos no acostamento largo e estreito. O tom taciturno na paisagem podia ser de nuvens carregadas a prenunciar densa tempestade ou efeito do pó áspero e escuro que cobria aqueles dias; não fazia diferença.
Havia uma recordação, uma tênue recordação do tempo em que os homens buscaram motivos para justificar as guerras. E motivos encontrados, o passo seguinte foi apreciar a destruição. E a violência foi banalizada e tornou-se normal. E tudo ficou normal, até que a anormalidade sofreu uma metamorfose, transformando-se no que de mais normal havia.
Os arremedos de homens mandaram os meninos para o fronte e muitas bombas foram atiradas sobre a crosta do lugar. A existência de árvores frutíferas baralhadas ou não - era um milagre. E milagres acontecem... e na contramão do bom senso, milagres são aniquilados. A morte da compaixão precede todas as mortes; a morte do amor, assinala o fim. Mas Afrânio Ramalho cultivava o amor – o dom supremo.
Surgiu na penumbra uma cidade destruída. Ramalho andou por entre entulhos. A cidade dormia silenciosa, sem vida – eterno sono. De cabeça pra baixo, uma torre ogival amparava grande relógio. O seis – como um nove avesso – estava no Norte; o doze – louco – estava no Sul; o nove – como um seis embriagado – estava no Leste; e o três – amalucado -, no Oeste. O que não representava problema, uma vez que o relógio não tinha ponteiro.
Pouco depois, entre os escombros surgiram antenas em movimento. E apareceu o blatídeo emitindo um som estranho.
“É curioso e estranho”, disse a grande barata, “causa estranheza o fato de vocês, humanos, nunca terem aprendido que a guerra só serve para entristecer Deus.”
Afrânio Ramalho ficou calado. Lembrou-se de que um dia lera em algum lugar que as baratas podem sobreviver a um ataque nuclear. Que bom ter comprovado o que lera, bom saber que a vida não fora totalmente extinta.
Ramalho tentou apalpar-se e não conseguiu. Era um amálgama de todas as eras, uma espécie de espectro tateando a pele do tempo à procura de lembranças – mesmo que vagas – de dias em que, ainda que parcialmente, a paz reinara no lugar.
A cidade despedaçada continuava silenciosa e de cabeça pra baixo, como um grande morcego em repouso.