Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
“Volta e meia sofremos solavancos e retrocessos”, disse o Décio, lançando um olhar desiludido à praça desolada, “o que nos torna o eterno país do futuro, privilegiado pela natureza, mas negligenciado pela alienação.”
“As coisas não são bem assim”, disse o Olegário, agarrando-se a um frágil sentimento de otimismo, “enfrentar solavancos na caminhada é natural, faz parte do processo de amadurecimento democrático; mas, discordo quanto ao retrocesso.”
“Ah é? Pois eu afirmo que em 2018 o povo foi às urnas e optou pelo retrocesso.”
“Sinto um sutil requinte de crueldade em suas palavras”, disse o Olegário, “em 2018, o eleitor apenas comprou um produto das redes sociais, não esqueça que estamos vivendo na era do marketing, as chamadas fake news vendem candidatos como se fossem xampu ou refrigerante; ademais, o eleitorado tentou uma alternativa, e você sabe que o povo vive em busca de um super-herói, é assim desde sempre.”
“O povo já devia saber que o único super-herói que existe é o homem-invisível.”
“Como é que é? O homem-invisível existe?”
“É claro que existe, o fato de ninguém vê-lo é a prova de que ele existe.”
“Sei, se ninguém consegue vê-lo ele é invisível, faz sentido! Mas... Por que é que o homem-invisível veio parar na conversa?”
“É que falávamos da necessidade que o povo tem de ser liderado por um super-herói; sendo assim, a única alternativa é eleger o homem-invisível.”
“Quando digo que não acredito em retrocesso, estou me referindo à impossibilidade de mergulho literal no passado”, disse o Olegário, “mas, evidentemente, pode haver a reedição de uma estupidez anteriormente cometida, aliás, é o que ocorre amiúde em nosso triste país.”
“Concordo, e até entendo o voto equivocado, mas o que hoje está acontecendo desafia a sensatez, dois anos e meio é tempo suficiente para o eleitor entender que está à deriva em uma canoa furada num rio infestado de crocodilos e piranhas.”
“Isso é óbvio para quem pensa com clareza, mas, para muita gente, tal percepção não é tão simples, muitos acreditam que apoiar esse governo é uma demonstração de civismo, acabarão por descobrir, da maneira mais dolorosa, que é exatamente o contrário, que ser favorável ao atual governo é posicionar-se contra o país.”
“Eu diria que, em nome de um suposto civismo, estamos perdendo civilidade”, ponderou o Décio, “há uma confusão instalada.”
“Sim, a confusão está, de fato, instalada”, concordou o Olegário, “o momento é caótico, mas para compreendê-lo é preciso uma avaliação histórica, o povo não pode ser responsabilizado, aliás, ele é vítima da situação, não tem culpa se foi forjado por uma educação claudicante que não lhe proporcionou evoluir intelectualmente.”
“O que levou à construção de uma sociedade medíocre, incapaz de formular juízo de maneira judiciosa e efetuar escolhas coerentes.”
“Você chegou ao ponto”, disse o Olegário, “em outras palavras, acaba de dizer que o povo não tem culpa, por aqui não temos adultos, mas crianças crescidas, qualquer marqueteiro de má-fé é capaz de manipular, facilmente, nosso povo sofrido.”
“Além do mais, o pacifista pacífico e silencioso sempre morre para dar vez às pessoas que gritam.”
“Acho que já ouvi ou li isso em algum lugar.”
“Pode ser, emprestei a fala da escritora Alice Walker, mas, concordo inteiramente com ela, e convenhamos, ilustra muito bem nossa atual realidade.”