Todos os dias, eu e meus vizinhos aqui no bairro acordamos com o cantar melodioso de alguns galos que, como bem disse João Cabral de Mello Neto, tecem a manhã. Um canta e o outro responde como se fosse um desafio, competindo entre si para ver quem consegue cantar por mais tempo ou mais agudo. Mas, no fundo, eu penso que estão mesmo é buscando os primeiros raios de sol, que os mesmos conseguem chegar até nós devido aos cantares dos galos.
Ao ouvi-los, doces lembranças me invadem a alma e, claro, me transporto para um passado longínquo, onde as imagens se sobrepõem amareladas pelo tempo passado. Essas tornam mais nítidas as recordações e o doce cantar na vizinhança aviva ainda mais a saudade.
No momento em que escrevo essa crônica os ouço cantando.
Imagens rodam como se estivessem em um carrossel e, em dado momento, param fixando somente uma cena, e nela me vejo chegando pela manhã em casa exausto, depois de uma noite inteira de sábado dançando nos bailes de barracas.
Ah, eu digo bailes, mas, muitas vezes, eram “brincadeiras dançantes”, mas que tinham a mesma emoção dos grandes arrasta-pés ao som da sanfona no meio do terreiro.
Outro dia, comentei com meu amigo Odécio Rossafa sobre o privilégio que nós, antigos moradores do campo, tivemos em poder participar do grande movimento que foi o de deixar a roça e partir para a cidade. Podemos conhecer os dois lados. Tudo tem um custo, o nosso é o de encher os olhos de lágrimas quando falamos daqueles tempos que não voltam mais. E principalmente quando o assunto é algo que nos trás verdadeiras nostalgias dos tempos vividos.
Nós, caboclos e caboclas, trabalhávamos a semana inteira em meio aos imensos cafezais, tarefa dura, pesada, somente quem viveu a experiência para saber do que estou falando. Mas tudo isso ficava pequeno quando nos lembrávamos de que o sábado estava chegando e, com certeza, passaríamos horas agradáveis dançando com as caboclinhas mais lindas por aquelas bandas.
Havia os bailes em que o cavalheiro, ao adentrar o recinto, tinha que pagar, e os bailes de festa de casamento, para esses não havia cobrança. As damas, como sempre, tinham o privilégio de entrar de graça. Nos pagos, as caboclinhas não podiam recusar o convite ao serem tiradas para o bailado. Se recusasse, o moço ofendido pela “tábua”, e por estar pagando para dançar, impunha castigo a ela. Teria que ficar algumas músicas sem dançar com ninguém. Acontece que muitas não respeitavam o castigo e saíam com o primeiro que as convidassem. Pronto! Estava armada a confusão. O caboclo recusado parava o casal no meio da dança, se estivesse armado, sacava da arma, podia ser um revolver, um punhal, uma faca ou mesmo um soco inglês, e obrigava a dama a sentar-se no banco, forçando-a a cumprir o castigo por ele imposto. Aí aparecia o irmão da moça e o pau comia. O sanfoneiro sobre a mesa no meio da confusão não sabia se parava a musica ou se seguia em frente. Se parasse, alguém gritava: “Continua!”, apontando o velho Colt. Logo surgia a turma do “deixa disso”, acalmando os ânimos, e a festa continuava até o sol raiar. Ficava para a cabocla a lição de não mais dar “tábua” nos cavalheiros quando estes vinham lhe tirar para a dançar. Claro que nem todos os fandangos tinham esses entreveros, na grande maioria imperavam a alegria e o respeito.
Os galos no vizinho emudeceram. O sol já vai alto. As imagens dos bailes de barracas vão se fundindo e aos poucos desaparecem, mostrando que tudo passa. Tudo passa, menos as recordações. Essas ficam para sempre!