Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
“Sinto-me velho, e não me refiro ao sentido cronológico do termo, a certidão de nascimento diz que agora estou com oitenta e dois anos de idade, mas se fizermos uma inversão dos algarismos teremos vinte e oito, e vinte e oito está mais apropriado a mim”, disse Bartolomeu, “o que me deixa um pouco deslocado é a percepção da vigente fragilidade moral do momento histórico em que estamos inseridos.”
Lucas, o filho de Bartolomeu, tamborilou o tampo da mesa e perguntou:
“A vigente fragilidade moral incomoda ao senhor, papai?”
“É evidente que sim”, respondeu categoricamente Bartolomeu, “afinal de contas, moro no planeta Terra, sou parte integrante do todo, e tenho a opinião de que tudo que é feito no planeta afeta a todos que nele vivem.”
“Não se preocupe com isso, vovô”, pontuou o Aníbal, “o senhor é o homem mais honesto e moralmente ilibado que já conheci, não tem culpa se os outros agem mal, cada um deve responder por suas próprias ações.”
“Você tem uma maneira simplista de ver a vida”, disse Bartolomeu, “ademais, não se trata apenas da vigente fragilidade moral, quer dizer, isso já seria terrível, mas o fato é que, infelizmente, tornou-se praticamente impossível ter uma conversa agradável e sã nos dias de hoje”, e arrematou, “você está conversando com o sujeito e ele está consultando o celular, o que é que está acontecendo? Todos estão ficando idiotas?”
O Aníbal tem vinte e um anos de idade e é filho do Lucas, que por sua vez tem cinquenta e dois.
“Não precisa ofender, vovô”, protestou o Aníbal.
“Ele tem razão”, disse o Lucas, “não precisa ofender, papai.”
“Não foi minha intenção ofendê-los”, continuou Bartolomeu, “mas, convenhamos, prestar atenção ao que diz o interlocutor é o mínimo que se espera de uma pessoa educada.”
Lucas e Aníbal não gostaram, mas ambos desligaram seus respectivos celulares.
“O senhor está trabalhando em algum texto, vovô?”, perguntou o Aníbal.
“Não, no momento, não”, respondeu o velho escritor Bartolomeu.
“O senhor lançou seu sétimo livro há cerca de vinte anos, papai, “disse o Lucas, “sua vasta cultura o torna apto a escrever um novo e belo livro!”
“Tenho uma história idealizada há meio século”, anunciou Bartolomeu, “já providenciei papel e caneta em quantidade suficiente para realizar o trabalho.”
“O que é isso, vovô! Hoje em dia, usa-se computador para escrever”, disse o Aníbal, “papel e caneta representam um método arcaico, ultrapassado.”
“Há cerca de 5500 anos, os sumérios criaram a escrita cuneiforme, que consistia no uso de um estilete em forma de cunha que era pressionado em tabuletas de argila fresca; se comparado ao método cuneiforme, o uso de papel e caneta representa um método moderno”, disse Bartolomeu, “o que quero dizer é que o método é o que menos importa, o cérebro humano é o essencial.”
“Quanta sapiência!”, exclamou o Lucas, “como o senhor definiria a vida?”
“Ninguém consegue definir a vida”, disse Bartolomeu, “eu poderia dizer que vida é uma sucessão de eventos, ou a inevitabilidade inerente a todo e qualquer rebento, mas estas seriam definições do viver e não da vida”, disse Bartolomeu, e concluiu, “vida talvez seja como um alfabeto grego que começa antes de Alfa e segue além de Ômega!”
“Por que alfabeto grego, vovô?”
“Deixa pra lá, troque Alfa por A e Ômega por Z e não falemos mais no assunto!”