Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
O caos havia sido instalado no país. Milicianos desertores das forças de segurança do Estado, narcotraficantes e toda espécie imaginável de gangues e baderneiros fortemente armados espalhavam o terror por toda parte. Os poucos cidadãos que se recusaram a vender a alma e optaram por viver com retidão eram presas fáceis nas mãos de facínoras.
O estopim da calamitosa situação fora a implantação de uma política governamental de facilitação e incentivo do uso de armas de fogo pelos cidadãos em geral. Os extremistas do Ministério da Barbárie chegaram à conclusão de que o pensamento, a reflexão e a sensibilidade formavam um perigoso tripé. O resultado foi aquele caldo de truculência. Através da distribuição de cargos e regalias - e com o argumento de que filósofos podem despertar a reflexão e, por conseguinte, tornar a sociedade perigosa; e que poetas podem aguçar a sensibilidade e suscitar a capacidade de sonhar -, o presidente conseguiu obter o apoio do Congresso na aprovação de lei transformando poetas e filósofos em criminosos.
Isaac era poeta e estava em companhia de seus pensamentos poéticos, longe da fealdade impregnada naqueles dias de insensatez e perto da amada que fisicamente estava distante.
Filosofia é termo oriundo do grego e significa amor ao conhecimento. Isaac era poeta e amava o conhecimento. Havia um quê de filósofo naquele poeta que amava amar. Representava, pois, dupla periculosidade aos olhos insensatos daqueles homens ríspidos detentores do poder – um iminente perigo à ordem estabelecida.
A noite avançava e a saudade apertava. Isaac sentiu vontade de escrever poesia, mas tal prática era muito perigosa naqueles dias, se a patrulha do Ministério da Barbárie encontrasse um poema – ou mesmo um fragmento de poema – com algum cidadão, este era imediatamente detido, julgado e condenado à prisão perpétua. E dependendo do conteúdo do poema, cabia até mesmo a execução sumária.
O poeta às vezes escrevia poemas em muros ermos após certificar-se de que não havia câmera de vigilância instalada no lugar; mas a arriscada aventura tinha de ser realizada apenas durante o dia, e não podia ser diferente, pois sair à noite só era possível com autorização judicial.
O fato é que ninguém solicitava autorização para sair à noite, pois com o período noturno, uma escuridão cobria as cidades, já que todas as lâmpadas de todos os postes de iluminação pública achavam-se quebradas por disparos de armas de fogo. Em seu quarto, Isaac estava sentado em um colchonete fino e surrado jogado sobre o piso rústico. Levantou-se e foi olhar pelas frestas da janela. Do outro lado da rua, a lua jogava claridade sobre um amontoado de lixo. Sorriu, era noite de lua cheia.
O poeta ficou olhando para a rua, vendo e reconhecendo os gatos boêmios que brincavam felizes como se tudo estivesse perfeito. Então ouviu vozes, pouco depois, surgiu em seu raio de visão a patrulha do Ministério da Barbárie que fazia a rotineira ronda noturna. A patrulha era previsível e passava por ali a cada quarenta minutos cravados. Isaac aguardou uns cinco minutos e correu até o portão. Olhou para o alto. A lua estava linda e a tez aveludada da noite mostrava-se salpicada de sardas brilhantes.
“Que saudade, amor”, sussurrou o poeta.
Depois voltou ao colchonete. Cerrou os olhos e mentalmente escreveu poemas de amor. Restava-lhe aguardar o dia em que também se tornaria estrela para ficar junto da amada, entregues um ao outro num abraço terno e unidos na mesma oração...