Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Olho pro alto e vejo um avião da esquadrilha da fumaça fazendo acrobacias. Apenas o avião, nenhum vestígio de fumaça. De repente o avião desce e, durante sua queda, toco a testa, o peito e os ombros com a ponta dos dedos. O sinal-da-cruz é pelo piloto que está prestes a morrer. Então noto o bico forte e curvo e, percebo não tratar-se de um avião. É um falconídeo – ora carcará, ora falcão-peregrino – que, segundos depois, retorna às alturas levando uma serpente nas garras potentes...
Observo o cenário austero formado por esparsa vegetação de xiquexique. O calor intenso provoca um ilusório e tremeluzente efeito nas imediações. Ouço um barulho tétrico, um som que estilhaça o silêncio e faz arrepiar até os arbustos do lugar. Afasto cuidadosamente uma cortina e descubro que o som é produzido por feijão de guizo - um subarbusto da família das leguminosas, de flores amarelas, e sementes que se soltam dentro das vagens quando maduras e chocalham como guizos de cascavel. Então alguém clica um interruptor e tudo mergulha em total escuridão... Acordo.
O sonho é recorrente. Acompanha-me há décadas.
Abundantes e fragmentados vaticínios caem do firmamento no início da noite. Ignoro o mau agouro e mantenho o foco enquanto me aproximo do grande salão onde funciona a sede do clube. Nesses momentos sempre penso nas palavras de Goethe, em Fausto: “Nascimento e morte, é tudo inevitável, um eterno mar, um tecer constante nesta vida estafante.”
O velho Aramaico - guardião e porteiro do clube - me cumprimenta com um gesto discreto e diz:
“Pode entrar e aguardar o Outro, ele não tarda a chegar.”
Entro no salão cujas portas se fecham num tenso, arrastado e lamentoso rangido. As paredes são negras e umas poucas e fracas luzes no teto deixa o salão em penumbra. Posso divisar silhuetas de mesas e cadeiras esparsas pelo ambiente.
Espero.
Cerca de três minutos depois, Aramaico aparece na entrada do salão e anuncia:
“O Outro chegou, vocês conhecem as regras, vou fechar a porta que, só será reaberta quando o sobrevivente nela bater”, e passa a última instrução, “depois da total escuridão a sirene vai tocar, então terão trinta segundos para iniciar o jogo.”
Na penumbra era possível ver vultos. Mas quando Aramaico clicou o interruptor e fechou a pesada porta, o salão foi invadido pelo breu total. Soa a sirene.
Começo a me movimentar com cautela. Esbarrar em uma cadeira ou uma mesa pode significar a morte. Não posso entregar minha posição. Minha mão localiza uma mesa, coloco meu telefone celular sobre ela e continuo me movimentando. Por sorte, pouco depois meu celular toca, o Outro atira e entrega sua posição. Descarrego minha automática em sua direção e ouço um corpo caindo pesadamente. Depois, só o silêncio.
“Meus parabéns”, diz Aramaico, depois de abrir a porta e acender as luzes.
Pego meu telefone celular e, de passagem, olho para o Outro, trata-se de um garoto de uns vinte anos de idade. Faço o sinal-da-cruz. O clube do duelo é um pedaço mefistofélico inserido no vasto universo. Ah! A chamada perdida foi de Ângela.
Chego a casa com um buquê de rosas vermelhas e uma garrafa de vinho.
“Não atendi sua ligação porque sem querer tinha ativado o silencioso”, explico, “as rosas são um pedido de desculpa e uma sincera declaração de amor, quando nos conhecemos, você salvou minha vida, e continua salvando, amo você, meu anjo.”
O beijo é bom e longo. Ângela é mesmo minha salvação nesse mundo louco.