Quando o último paciente do dia se despediu, ele se deixou cair na confortável poltrona. Estava extenuado pela jornada que se iniciara às 5 da manhã, havia feito cirurgia, almoço rápido, passou na empresa, e consultório à tarde inteira. Teria ainda que fazer visitas no hospital a pacientes em recuperação, para só então ir para casa, beijar os três filhos e a esposa. Olha o relógio, 18h, uma das mãos sobre o braço da cadeira, a outra batucava delicadamente uma canção inaudível. Semi-cerra os olhos e, através da grande lente do telescópio mental, aproxima a torre da igreja da sua doce, terna e sempre lembrada Embaúba.
“Nesse momento, o sino saudoso anuncia badaladas da Ave Maria.” Pensa consigo. Suas lembranças se aprofundam ainda mais e vê, numa imensa tela de LED, imagens do passado em sépia e em preto e branco. Nas imagens desgastadas no túnel do tempo, ele se vê ainda menino, pés descalços, brincando ao redor da casa no sítio São João. A mãe, dona Clarice, tirando água no poço e despejando na “vasca” ao lado do “batedô”. No chão, uma bacia cheia de roupas com anil, aguardando ir para o “quarado”. Uma galinha choca conduz os pintinhos recém-saídos da casca para tomar água no coxinho de taquara.
As imagens surgem em profusão, outra vez vê sua mãe, agora tirando do forno à lenha uma “fornada” de pão quentinho. Apesar do tempo passado, ele ali, sentado na poltrona do seu amplo consultório, sente o aroma do pão de torresmo. Cortar um “táio” da iguaria, passar manteiga caseira, vê-la derreter sobre o pão morninho, não tem preço.
As imagens aceleram, aparecem os irmãos, os primos e todos aqueles que fizeram parte da sua infância. A emoção do primeiro banho no “corgo”, com a molecada, todos nus, a exemplo dos anjos renascentistas. Buscar saibro no brejo para fazer bolinhas, deixá-las secar ao sol e sair em bandos de meninos pelos pomares, derrubando caixas de marimbondos, atirando em lagarto verde e acertando, vez ou outra, pequenos pássaros e, além, claro, de derrubar saborosos jatobás.
Alguém que entrasse nesse momento na sala veria um senhor com semblante calmo e no canto dos lábios um sorriso de satisfação. Lembrou-se emocionado de como recebeu a alcunha de “Tiriba”. Ganhou do pai, seu João, uma camisa do Palmeiras. Só que ela tinha o dobro dele. Franzino que era, e naquela roupa enorme, não demorou para que alguém comentasse: “Zé Ronardo, ocê tá parecenu um tiriba”. Tiriba, nome regional do tuim, a menor ave da família dos periquitos. A partir desse dia, ninguém mais o chamou pelo nome, só pelo apelido.
As imagens se aceleram. Ora se vê capinando, ora trabalhando como boia-fria na colheita da laranja, do algodão, do milho, do arroz e do feijão. A vida era dura, mas tinha o lado romântico das brincadeiras dançantes aos sábados e as quermesses nas vilas da região.
Um dia ele ficou moço, queria vencer rapidamente na vida, ficou sabendo que o apresentador Chacrinha viria a Catanduva com sua caravana. Convidou um amigo para parceria e se apresentaram. Levou para casa abacaxi, como prêmio. Morria ali o sonho de alcançar a fama e dinheiro rapidamente. Então pensou: “Não tem outra forma, a não ser estudar”. Foi para a casa da irmã em Campinas fazer cursinho. Como não tinha dinheiro para passeios, ficava em casa estudando. No final do ano, a compensação: passou em quatro faculdades de medicina, inclusive aqui em Rio Preto, na Famerp.
Toca o interfone. Sua secretária o alerta de que são horas passadas. Tem que voltar à realidade. Dependura o jaleco no cabide, ao sair encosta a porta. Nela, uma placa com seu nome: Dr. José Ronaldo Stelluto, cirurgião vascular.