Num desses domingos pela manhã, em que mesmo sem desejar a gente acorda cedo e pula da cama, acordei nostálgico. Me deu vontade de reler Mário Quintana: “Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira! Quando se vê, já é Natal. Quando se vê, já terminou o ano. Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê, passaram 50 anos!”
O poeta gaúcho tem o poder de mexer com nossas reminiscências. Lembrei-me do meu pai. Me deu uma saudade imensa que resolvi sentar-me ao computador e escrever sobre ele.
Quando o caboclo Olegário Soares nasceu, seus pais, Maria e Victorino, e mais doze irmãos moravam na fazenda Taquaruçu, em Monte Aprazível, onde tocavam café à meia. Ele não conheceu o pai, que morreu seis meses depois. Por ter nascido de sete meses, foi colocado numa caixa de sapatos forrada com algodão, à espera de a morte chegar.
Antes de completar um ano, aconteceu a primeira morte. A mãe ia pra roça ajudar na lida com os irmãos maiores, ficando o menino aos cuidados de uma irmã menor. A menina era encarregada de fazer almoço, limpar a casa e levar o “di cumê” para os que estavam no trabalho. Certo dia, levou o almoço, voltou às pressas para cuidar do irmãozinho que lhe esperava ansioso. Sua intuição lhe dizia que algo não estava bem. Ao abrir a porta da tapera, sentiu gelar o corpinho quando se aproximou do catre onde dormia o irmão. Tocou-lhe as faces, notou que estavam mais frias do que de costume. Chamou pelo nome, não respondeu. Voltou correndo pra roça pra chamar a mãe. Ela, quando viu a menina em sua direção, sentiu arrepios percorrerem seu corpo. Legarinho, como era carinhosamente chamado, acabara de morrer.
O corpinho envolto num lençol encardido sobre a mesa e velas em volta aguardavam o caixãozinho chegar da cidade, no outro dia. Faltava pouco para a meia-noite, quando alguém percebeu movimento leve numa das mãos. Na comunheira do paiol, a coruja piou, o menino abriu os olhos. Foi uma festa!
Naqueles tempos, não sabiam o que era catalepsia. Em alguns casos, pode ser confundido com a morte.
Mais de 85 anos depois, doenças foram minando lentamente sua saúde. Já não íamos mais aos domingos ao Mercadão, como fazíamos há anos. Aquele homem que para mim, um dia, na minha infância, fora alto, forte, agora, não passava de uma criança, carecendo de cuidados. Os papéis tinham se invertido. Além de ele ser meu filho, passei também a ser sua mãe. Com todos os cuidados maternos. Tinha a impressão de que ele havia saído do meu ventre, tão forte o sentimento que nos unia. Numa tarde, carreguei-o no colo, sentindo que seria nosso último passeio, e foi. Coloquei-o no banco do carro e fomos dar uma volta ao léu. Ele, com olhar perdido na vastidão do universo, eu, com olhar doce e terno àquele menino que um dia fora meu pai, agora meu filho, acabado de sair do meu ventre. Ele, convencido de que tudo volta ao início, preparava-se, doce e ternamente em definitivo, para sua segunda morte!