O Brasil pode ter abolido a escravidão formalmente em 1888, por meio da Lei Áurea, mas ainda hoje vemos notícias de resgates de pessoas submetidas a condições análogas à escravidão. No mais alto grau de degradação humana, sem direitos e privados de sua liberdade, pessoas e até mesmo famílias inteiras são forçadas a trabalhar sem dignidade por anos a fio. Engana-se quem pensa que essa parte obscura da história brasileira foi superada; o combate a esse tipo de crime persiste e deveria ser feito com mais afinco.
Embora a escravidão não exista formalmente na atual legislação brasileira, há diversos dispositivos legais no ordenamento jurídico que condenam essa conduta. O Código Penal, em seu artigo 149, tipifica o crime de redução a condição análoga à de escravo, definido como reduzir alguém a essa condição, seja submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, seja sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, seja restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
O crime previsto no artigo 149 estabelece uma pena de reclusão de dois a oito anos, além de multa e da pena correspondente à violência, para quem o cometer. Nos casos em que o crime for cometido contra criança ou adolescente, ou motivado por preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, a pena é aumentada pela metade. A Constituição, no artigo 243, prevê ainda a expropriação de propriedades rurais onde forem constatadas situações análogas à escravidão. Essas terras seriam tomadas pelo ente público e destinadas à reforma agrária. Contudo, apesar de essa previsão estar na Constituição, é necessário que uma lei infraconstitucional delimite os parâmetros para tal ação, o que ainda não ocorreu.
É importante mencionar que vários tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário também coíbem esse delito. A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, por exemplo, afirma que ninguém será mantido em escravidão ou servidão, e que a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. A Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil desde 1957, define como trabalho forçado, em seu artigo 1º, todo e qualquer trabalho para o qual o trabalhador não pode decidir livremente se aceita a atividade.
Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mais de 2,5 mil pessoas foram resgatadas de situação análoga à escravidão em 2022, e mais de 3,1 mil em 2023, o maior número desde 2009. O setor em que mais pessoas são resgatadas dessa situação ainda é a agropecuária, liderada pelo cultivo de café e criação de bovinos. De acordo com um estudo feito pelo Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, além da agropecuária, os principais setores envolvidos nesse tipo de crime são a extração de minérios (geralmente ilegal) e a construção civil nos grandes centros urbanos.
Apesar do aumento do número de resgates nos últimos anos, não é possível quantificar a quantidade de pessoas sujeitas a essas condições. Em pronunciamento, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) afirmou que a falta de auditores fiscais dedicados à fiscalização dificulta os resgates e a prisão dos criminosos. O combate às situações de escravidão deveria ser uma das principais prioridades em termos de gestão governamental. O investimento em pessoal e tecnologia é extremamente necessário neste momento. O combate deve ser contínuo; devolver a dignidade humana a essas pessoas é o mínimo a ser feito.