Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
O vento fazia malabarismo com folhas secas e criaturas malfazejas e invisíveis dançavam no ar poluído. Não chovia fazia um bom tempo e uma desolação incômoda tomava conta da cidade. Um carro negro estava parado em uma rua pacata. Dentro do carro, dois homens guardavam um silêncio que já se prolongava há quase três horas.
“Você acha que ele vai aparecer, Anaxágoras?”, perguntou um dos homens.
O silêncio era tão tenso que o outro se assustou ao ouvir a pergunta, disfarçou o susto com um sorriso parcial e respondeu:
“Não tenho a menor dúvida, ele não tardará a chegar, Anaximandro.”
E o silêncio voltou a reinar dentro e fora do automóvel negro. Meia hora depois, foi Anaxágoras quem quebrou o silêncio:
“Ele está demorando muito, não acha?”
“Acho, mas concordo com você, ele vai aparecer.”
“Conseguiram-nos codinomes estranhos”, disse Anaxágoras com displicência, como quem diz algo apenas para se livrar da quietude.
“Disseram lá na Central que Anaxágoras e Anaximandro são filósofos pré-socráticos, viveram há dois mil e quinhentos anos.”
“Tempão! Falando nisso, qual será a idade do presidente?”
“Cronológica ou mental?”
“O quê?”
“Bom, é evidente que há um descompasso entre a idade cronológica e a idade mental do presidente.”
“O presidente apenas fala o que pensa.”
“Se assim fosse, ele seria mudo.”
“O que é que há? É certo que o presidente às vezes diz umas besteiras, mas daí a não pensar... Que maldade!”
“Ele não diz besteiras às vezes, diz besteiras em tempo integral; não sou maldoso, você é que é muito generoso.”
“Espere um pouco, ele chegou, está no retrovisor, carro prata, cerca de cinqüenta metros, acaba de parar junto ao meio-fio.”
“Mas... o que é isso? Está sem a equipe de segurança!”
“Está sozinho, mas é ele, excesso de confiança, afinal, o território é dele.”
“Claro, ninguém mais usaria um blusão com o calor infernal que está fazendo, deve ter um canhão e um colete à prova de balas sob o agasalho, saiu do carro.”
Anaxágoras e Anaximandro pegaram suas respectivas armas e fizeram pontaria.
“No três”, disse Anaximandro, “um, dois, três!”
Foram dois tiros certeiros, ambos na cabeça do homem do blusão. Mas soou apenas um disparo. Anaxágoras e Anaximandro sempre usavam o artifício que, além de duplicar a eficácia da ação, confundia eventuais testemunhas.
Os dois atiradores caminharam até o carro prata. O homem do blusão estava caído, a cabeça mergulhada nu sangue, como uma ilha perdida num mar vermelho. Anaxágoras olhou para o rosto sem vida, virou-se para Anaximandro e disse:
“DOC, Dano Operacional Colateral, não é o alvo, só um sujeito friorento.”
“Friorento e azarado”, completou Anaximandro.
Retornaram ao carro negro.
“Vamos tomar uma cerveja”, disse Anaxágoras, “depois pegaremos o alvo.”
E o carro negro começou a deslizar mansamente na rua silenciosa e plúmbea.
Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal