Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Sentia-se de cabeça para baixo. Mas a infância, aquela fase de outrora em que plantava bananeiras, ficara em um tempo perdido; ou melhor, ficara em um tempo encontrado apenas em uma longínqua memória. Era adulto, um adulto preso num torturante e incômodo mundo em que os livros liam os homens e as nuvens eram capachos de algodão.
E naquele mundo zombeteiro de contradições, caminhava pela praia em uma manhã enluarada. Sentia os pés afundando no tédio da aragem preguiçosa e a cabeça roçando a areia.
Eram dias cruéis, aqueles, os homens confundiam cais do porto com caos do parto. Tremenda contradição, mundo baralhado, o correto, ele sabia, seria dizer: caos do porto e cais do parto. Sua vista turva estendia-se até a linha do turvo horizonte.
“Todos chegam e partem do cais”, disse a uma gaivota que passava, “quanto ao caos, penso ser ele o produto final de repetidos equívocos humanos.”
A gaivota interrompeu o voo, pousou na areia – ao lado do homem – e disse:
“Você fala de uma maneira interessante, sobretudo para um homem.”
“Tenho uma inquietação”, continuou o homem, “jamais conhecerei a exata medida de mim mesmo, sequer a aproximada noção do que poderia ter sido, sou apenas fruto de um processo histórico, dos estímulos que recebi, homens são criaturas adestradas que não conhecem a verdadeira essência; os homens são seres forjados, patéticos soldadinhos numa estúpida guerrilha pela sobrevivência, minha cara gaivota.”
“Considere a possibilidade de que, ainda que a passos lentos, marcha um processo de evolução”, disse a gaivota, “como em uma ascendente em espiral quase imperceptível; exemplo: acabo de fazer um voo sobre sua cabeça, no passado, seria um perigoso pterodátilo que faria tal voo.”
“Analisando assim, não deixa de ser um alívio.”
“Por outro lado”, continuou a gaivota, “um pensamento torpe é bem pior que um pterodátilo, e infinitamente mais perigoso.”
“E o pior de tudo é a ausência de pensamento.”
“Sim, mas você pensa, e é com imensurável satisfação que faço tal constatação.”
“Penso, mas às vezes penso que o pensamento é a raiz de todos os sofrimentos; o que não é objeto de pensamento continua oculto, e o que ignoro não me causa dor.”
“É certo que o pensamento pode gerar sofrimentos, mas, também pode despertar.”
“Uma vez concebido, o pensamento também pode ser torturante, isso ocorre na impossibilidade de concretização do que se pensou; por exemplo: penso que seria magnífico voar, mas, não consigo voar.”
“É claro que você consegue voar.”
“Como posso voar se não tenho asas?”
“Você ainda não percebeu? A imaginação é a mais poderosa das asas.”
“É pena que tornamo-nos adultos”, disse o homem, “os adultos perdem, paulatinamente, aquele impressionante poder de imaginação que tinham quando crianças; crianças são capazes de construir um universo perfeito a partir de um simples brinquedo.”
“Ao passo que os adultos perseguem apenas o poder, pobres adultos! Acabam por descobrir que só a leveza possui peso relevante.”
Então, por um momento o homem endireitou-se e voltou a ser criança.
E homem e gaivota voaram. Livres e leves.
Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal