Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
“Estou aqui para prestar uma queixa”, disse Heleninha.
“Perfeitamente”, disse o delegado, “vamos registrar o Boletim de Ocorrência, presumo que tenha sido violência doméstica.”
“Podemos dizer que sim, já que a ação foi violenta e ocorreu dentro de casa.”
“E quem foi o autor? Ex ou atual?”
“Como?...”
“Marido, noivo, namorado, fixo, eventual...”
“O que é isso? Está me deixando confusa e constrangida!”
“Procure se acalmar, não tenha receio algum, pode ficar totalmente à vontade, vamos precisar de algumas informações sobre o ocorrido.”, disse o delegado, apontando para o braço enfaixado de Heleninha.
“Não, isso aqui foi provocado por uma queda de patins.”
“Ah, sim, então você não é a vítima?”
“Não, sou a neta da vítima, invadiram a residência de meu avô e levaram quase tudo, levaram até o sorriso de vovô.”
“Muito bem, o fato de seu avô ter sido a vítima facilita as coisas.”
“Por quê?”
“É que esta não é uma Delegacia de Defesa da Mulher, mas, voltemos ao caso, seu avô viu os meliantes? Poderia fazer o reconhecimento dos elementos?”
“Não, vovô não pode fazer reconhecimento algum.”
“Por quê?”
“Vovô estava meio grogue, sob efeito de drogas, e os bandidos usavam capuz.”
“O caso está se complicando, seu avô usa drogas?”
“Sim, mas todas as drogas que vovô usa são prescritas pelos médicos.”
“Então seu avô não compra drogas em bocas-de-fumo?”
“Mas é claro que não, as drogas que vovô usa são compradas em drogarias, o senhor é maluco?”
“Não se ofenda, é que pela minha experiência e vivência na polícia, posso lhe assegurar que existem muitos velhinhos doidões por aí.”
“Não é o caso de vovô, ele só é viciado em site de relacionamento”, pausa, “o senhor vai registrar o BO ou não?”
“Claro que sim, vamos registrar o BO imediatamente.”
O escrivão registrou informações preliminares e aguardou.
“Muito bem”, disse o delegado, “precisamos elaborar uma lista dos objetos subtraídos da residência.”
“Levaram aparelhos de TV, obras de arte, pouco mais de cinco mil reais em dinheiro, dois celulares, forno microondas, boneca inflável...”
“Vamos investigar”, disse o delegado quando Heleninha terminou a lista, “se conseguirmos recuperar os pertences, entraremos em contato”, pausa, “sugiro que procure ajuda especializada para seu avô, não é raro que, após uma experiência traumática, a tristeza evolua para depressão.”
“Por que está dizendo isso, emocionalmente vovô está ótimo.”
“Mas... a senhorita disse que roubaram o sorriso de seu avô.”
“Não é isso! É que levaram a dentadura de vovô, que estava dentro de um copo com água, sobre o criado-mudo, que espécie de facínora cometeria tal atrocidade?”
“Os da pior espécie, senhorita, os da pior espécie.”
Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal