Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
“Note e anote”, disse Leandro ao amigo Silas, “o País virou um caso de polícia, meu caro.”
“Concordo, só acho que devemos estender isso a todo o Planeta”, disse Silas, “a humanidade perdeu o bom senso e transformou toda a Terra em um caso de polícia.”
“Certo, mas podemos traçar um diagnóstico mais preciso da realidade em que vivemos, por aqui, a polícia está atuando na repressão aos desvalidos dos becos fétidos e na apreensão de documentos comprometedores nos gabinetes dos poderosos.”
“Bem como em tudo que está entre os becos e os gabinetes, o que muda é a maneira de atuar.”
“A bem da verdade, os gabinetes dos poderosos são mais fétidos que os becos, mas os olhos só enxergam a superfície e o nariz só consegue detectar odores óbvios.”
“Operam-se as conexões e tudo caminha em círculos, reafirmo: o País virou mesmo um caso de polícia, a polícia está até em escolas e hospitais onde, respectivamente, estudantes brigam entre si e com seus professores e a demora pelo atendimento médico costuma gerar conflitos.”
“É! Os choques de opiniões e os comportamentos impróprios proliferam em proporção diretamente proporcional à insanidade; o esvaziamento mental aniquila a capacidade do diálogo e da argumentação, o que faz com que qualquer diferença encaminhe para o confronto.”
“De fato, tudo virou caso de polícia, até a polícia virou caso de polícia, haja vista a frenética e crescente atividade da corregedoria.”
Leandro e Silas tiveram aquela conversa fazia muitos anos, quando eram policiais da corregedoria e ainda estavam na ativa. Mas, inexoravelmente, viver é um processo dinâmico onde os eventos se sucedem e o tempo flui. Os dois policiais ficaram idosos, aposentaram-se e perderam contato.
Após a morte da esposa, Leandro, sem os antigos colegas e sem amigos, passou a viver tendo apenas a solidão como companhia. O ex-policial engordou e passou a usar um suspensório para manter as calças no corpo.
Recentemente, o velho Leandro estava sentado em um banco de praça com seu suspensório e suas reminiscências, olhando para os edifícios e automóveis e elogiando mentalmente a beleza das garotas que passavam. E aconteceu que, subitamente, uma nuvem escura cobriu a cidade. Os edifícios e automóveis ficaram turvos e as iluminadas belezas das mulheres transformaram-se em silhuetas, insinuantes e provocantes, porém, silhuetas, como se estivessem passeando no cenário noturno de um sonho distante.
Era apenas um prenúncio. Um ensaio do dia em que, por volta do meio-dia, o sol seria encoberto, o firmamento ficaria rajado e a noite chegaria antes do anoitecer. Um apavorante breu iria penetrar nos poros e deixar em frangalhos os nervos de todas as criaturas denominadas humanas e, até mesmo os mais cépticos iriam implorar pela proteção divina. E soariam trombetas. E os casos de polícia passariam a ser questões de justiça.
Tudo bem. Nada some na poeira, nem mesmo a própria poeira, o que ocorre é uma transmutação, uma constante metamorfose. A poeira é forte e aprisiona a história do tempo. Os fortes não se assustam com nada, sabem que vida e morte são apenas circunstâncias inevitáveis da mesma estrada. Nem mesmo a saudade assustava o velho Leandro; apenas doía; por outro lado, oferecia a balsâmica sensação da possibilidade de recomeçar; de experimentar reencontros...
Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal