Uma palavra plena de significados para a Filosofia, para a História, para os sentidos das coisas humanas: contingente. Contingente é um evento possível, mas não necessário. Inexiste domínio sobre todas as variáveis incidentes em um acontecimento. Qualquer episódio, em alguma medida, é incontrolável.
Disso decorre uma questão: a Civilização é resultado cogente da vontade humana, ou é implicação do acaso? Os escolásticos (pensadores cristãos medievais zelosos em conciliar uma racionalidade idealizada com o que consideravam “a verdade revelada”) ditaram o seu entendimento por séculos.
Contingente, na escolástica: “qualquer ocorrência fortuita e casual quando considerada isoladamente, mas necessária e inevitável ao ser relacionada às causas que lhe deram origem” (Houaiss). Deve-se ler “causas que lhe deram origem” como a vontade onipresente do deus medieval cristão (Jeová).
Espinoza (sec. 17) retomou o tema. Para o filósofo, vistas as coisas com percuciência, em tudo se encontra nexo (causa e efeito). No espinozismo, “circunstância aparentemente eventual, em decorrência de uma limitação do conhecimento humano na compreensão de sua origem causal” (Houaiss).
“Na filosofia contemporânea, em polêmica com a tradição, diz-se de evento natural ou humano que se caracteriza por sua absoluta indeterminação e imprevisibilidade” (Houaiss). A Filosofia e a História atuais compreendem que fatos não são consequentes necessários os seguintes dos anteriores.
Aurélio: “Diz-se das coisas e dos acontecimentos que se concebem, sob qualquer um dos aspectos da sua existência, como podendo ser ou não ser, não trazendo em si a razão da sua existência”. Contingente, nesta acepção, opõe-se a inevitável. Acentuo: nada traz em si mesmo a razão da sua existência.
Um evento pode ter-se efetuado, ou não, e, embora efetuado, poderia ser diverso do que foi. Nada tem que ser como é. Agora, tendo sido como foi, ou sendo como é, gerou ou gera efeitos tais e quais, e não outros. Gera efeitos no mundo, mas não o determina de todo, porque sobre ele há ação humana.
A ação humana, contudo, à sua vez, é influenciada ou até delimitada pelas coisas e acontecimentos. Seja: a História participa em parte dos desdobramentos históricos. Do mesmo modo, as condições materiais de um tempo ou lugar incidem na História. Mas há uma terceira variável incidente: a vontade humana.
Na vida em comum, o humano é responsável pelas condições éticas da convivência. Ética como eleição de valores e efetivação de discursos. Escolhas éticas e práticas cotidianas, todavia, se extraem a si mesmas de compreensões ideológicas do mundo. Compreensões ideológicas, destarte, incidem sobre ações.
Dizendo de outra maneira: nem tudo é contingência na Civilização; o humano tem parte ativa na História. O humano atua no mundo, age sobre a História, contudo o faz a partir da compreensão de mundo hegemônica (ideologias que o alcançam). É muito difícil pensar fora do pensamento que todo mundo pensa.
Os gregos atribuíam ao Cosmo (disposição necessária do mundo) todo e qualquer acontecimento. Os cristãos tomaram essa compreensão de mundo (estoicismo) dos gregos e lhe agregaram a divindade abraâmica. Daí, para a tradição cristã, o mundo é ou deixa de ser por efeito da vontade de seu deus.
Só com a Modernidade e a invenção burguesa do indivíduo é que se trouxe o humano para a gerência do humano. Ou o humano faz o mundo à sua imagem e semelhança, ou dana-se no mundo. Daí o humano começou a reconstrução de valores (direitos) humanos e a propor que valessem para toda a humanidade.
Não obstante os burgueses terem traído a própria Revolução e tomado o mundo só para si, o fato é que a realidade cotidiana não é mais cósmica nem divina. Liberdade e Igualdade tornaram-se qualidades desejadas no Ocidente, ainda que não aconteça Fraternidade bastante para a devida implementação.
A Tradição Ibérica (católica) nunca foi assaz burguesa. Cultuamos mais o cristianismo estoico do que a liberalismo burguês. Ademais trazemos subjacência patrimonialista, baralhamos, “naturalmente”, público e privado. Resumo: os brasileiros não nos responsabilizamos pelas nossas mazelas sociais ou morais.
Entretanto, nos pomos estupefatos, como se não tivéssemos culpa de nada, com nossa violência urbana e com nossa roubalheira quase geral. Ora, os episódios da História, ainda que não sejam cósmicos ou divinos, e mesmo que sejam em grande parte contingentes, o são, em boa medida, administráveis.
Em Direito, a responsabilização por danos considera a teoria que distingue imprevisão de imprevisibilidade. Algumas coisas não são mesmo passíveis de previsão. Em não havendo previsibilidade, não se pode responsabilizar alguém por uma ocorrência desastrosa, advinda de caso fortuito ou de força maior.
Se posso, todavia, prever um dano, mas, por imperícia, imprudência, ou negligência, não o faço, sou responsabilizável. Por ação ou omissão, sou responsável. Os brasileiros somos responsáveis ativos pelos danos que nos causamos, e somos responsáveis passivos por não contribuirmos com nossa vida pública.
Embora os brasileiros tenhamos que dar conta do Brasil, pois ninguém o fará por nós, temos afetado indiferença e nojo por políticos. Muitos deles nos esgotam, é verdade. Isso explica o desânimo. Explica, mas não justifica: desalento pessoal não elide obrigação cívica. O jogo posto é o de nós com nós mesmos.
Enfim, a sós: o Cosmo não arranjou nossa vida social; Jeová nos largou à violência; orações conduziram o mercado divino a se expandir no Congresso. Abandonando os negócios nacionais aos fatores contingentes, ficamos sob risco de tudo ficar como está, ou de se agravar. Melhor vencer o asco blasé e fazer política.