Escritor Tony Rocha (Foto: Arquivo Pessoal)
Neblina
Há muito estava acostumado e adaptado àquele mundo sombrio. A bem da verdade, nem se lembrava de ter conhecido outro mundo, se é que conhecera. Já não tinha pesadelos; não era, pois, por medo de pesadelos que não dormia. O instinto de sobrevivência fazia com que seu cérebro permanecesse sempre alerta. O estado de vigília, vez ou outra era interrompido por breves cochilos apenas.
No interior da floresta, próximo ao riacho, despertou de um cochilo, esfregou os olhos e levantou-se. O som dos habitantes do lugar chegava-lhe aos ouvidos como uma melodia melancólica e recorrente. Atravessou o riacho pela grande árvore que caíra e servia-lhe como pinguela. Caminhou por umas três horas até chegar ao ponto em que a mata cerrada chegava ao fim.
Era a primeira vez – em décadas – que atingia o extremo da floresta. Sentiu-se nu e, de certo modo, desprotegido, sem as árvores que diuturnamente lhe serviam como escudos. Pensou em retornar. Mas, resolveu aventurar-se pela planície.
Passava da meia-noite e a noite estava gelada. A silhueta difusa do homem começou a se movimentar desajeitada e errante pela densa neblina.
Algum tempo depois, no meio da madrugada, Norberto estava na sala de sua casa, deitado no sofá. Acordou com a sensação de ter ouvido o som indecifrável de um despertador macabro. Abriu os olhos e foi sacudido por um calafrio. O terror o fez estremecer internamente, mas, não conseguiu se mover, ficou petrificado pelo pânico. O homem da floresta estava no meio da sala, encarando Norberto com indiferença.
Norberto e o assustador visitante ficaram calados por alguns segundos, um breve silêncio que, para Norberto, pareceu uma eternidade. A madrugada gelada parecia não incomodar o homem que acabara de sair da neblina. Seu corpanzil de dois metros mais dez centímetros de altura estava protegido por peles de animal, mas os braços estavam nus. Um gorro de caçador salpicado de sangue cobria-lhe o alto da cabeça e o facão que segurava na mão direita, conferia-lhe ares de arauto da morte.
“Quem é você?”, conseguiu perguntar Norberto, quebrando o tenso silêncio.
“Sou aquele que vai matá-lo”, respondeu o recém-chegado com uma voz gutural que faria arrepiar ao mais impávido dos mortais.
“Não precisa fazer isso, pode levar o que quiser, mas... poupe minha vida.”
“Eu disse que vou matá-lo, não roubá-lo.”
“Por quê? Não lhe fiz mal algum!”
“Não se trata disso, mas, não há motivo para desespero, todos vão morrer um dia, você é, na verdade, um privilegiado, pois sabe que vai morrer em alguns minutos, enquanto a maioria desconhece o dia da própria morte.”
“Mas... Por quê?”, insistiu Norberto, “não escolhi o dia de hoje para morrer.”
“Você também não escolheu um dia para nascer, pare de choramingar e reaja, tente defender sua vida, já que julga ser tão importante viver no patético planeta Terra.”
Norberto encolheu-se embaixo do cobertor. Sentiu na boca o característico e adocicado gosto de sangue – prenúncio do fim.
“Chegou a hora, a sua hora”, disse o homem que saíra da neblina.
“ESPERE”, gritou Norberto quando o facão brandiu sobre sua cabeça.
“O que vai fazer?”, perguntou o gigante, detento a arma branca que descia como a lâmina de uma guilhotina.
“Acordar”, disse Norberto. Levantou-se do sofá de um salto. Enxugou o suor. Desligou o aparelho de TV e, ofegante, seguiu para o quarto.