Ao lembrar aos juízes que o trono de Salomão era suportado por dois leões, um de cada lado, Francis Bacon dava-lhes este conselho: sejam também leões, mas leões debaixo do trono; e procurem ser mais instruídos do que sutis, mais reverendos do que aclamados, mais circunspectos do que audaciosos e jamais façam oposição aos pontos da soberania. A recomendação do filósofo inglês, resistindo à névoa de quatro séculos, continua a ser a viga que sustenta o pedestal da plêiade a quem cabe o jus dicere, o ofício de interpretar leis. O pensamento vem à tona no momento em que a cúpula do Judiciário tenta contornar a polêmica que corrói suas entranhas, acirrada pela expressão da corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Eliana Calmon, de que “bandidos de toga” proliferam no País. Na esteira da querela sobre a atuação do CNJ, que culminou com decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de manter seu poder de abrir processos contra juízes, choveram denúncias de desmandos, “vantagens eventuais”, dentre as quais, pagamentos milionários a alguns de seus quadros. O fato é que o altar da Justiça, tão admirado no passado, vem sendo abalado por sismos. Sob o exercício pleno de nossa democracia.
O desgaste do Judiciário - o ministro Cezar Peluso repele o termo crise para definir a situação - vem-se desenvolvendo na esteira do processo de institucionalização do País. A Constituição de 1988, com a pletora de direitos que abriga, oxigenou os pulmões sociais, estabeleceu polos de poder, propiciou novos ordenamentos, convergindo tais conquistas para a abertura da locução nacional. Sob o império das liberdades, o discurso ganhou densidade. Magistrados, conhecidos pela atitude de consciencioso recolhimento, entraram no ritmo da dinâmica social. A obscuridade dos anos de chumbo deu lugar à claridade. Juízes antigos, atrelados ao ditado “é difícil ensinar cavalo velho a marchar”, passaram ao convívio de colegas mais jovens, de visões abertas e dispostos a mudar o lema que adornava seu pedestal: “Juiz só fala nos autos”. Nas novas fronteiras, o entendimento passou a ser o de que o juiz tem de prestar contas à sociedade.
Sua visão deve permanecer vedada sobre matérias ainda em julgamento, como preceitua a Lei Orgânica da Magistratura. Mas o juiz pode discorrer sobre questões decididas, já expressas nos autos ou citadas em público. Em seu amparo invoca o artigo 5.º, IV e IX, da Carta Magna, que tratam da livre manifestação do pensamento e da livre expressão da atividade intelectual. Portanto, sob o estatuto da transparência e do direito do cidadão de saber o que se passa na administração da Justiça, os magistrados ganharam ampla visibilidade na mídia.
Na Suprema Corte a locução escancarou-se pela cobertura da TV Justiça, que transmite ao vivo as sessões. A publicidade, convenhamos, acende os ânimos. Veiculado maciçamente e compartilhado com a sociedade, o pensamento dos ministros recebe palmas e críticas. Os contrários, eixo da democracia, se manifestam. E assim o halo brilhante que conferia aos magistrados a imagem de entes sagrados esmaeceu e passaram a ser vistos como pessoas comuns, passíveis de errar, e a receber um carimbo de grupos de opinião e operadores do Direito: este é intelectual; esse, culto e ilustrado; aquele, menos experiente, mas preparado; outro, muito técnico ou mais reservado, etc. A massa conflituosa ganha intensidade com a crítica sobre a “politização da Justiça”. Buracos abertos por inúmeros dispositivos da Constituição tiveram de ser tapados pela Alta Corte. Acionada, viu-se compelida a produzir intensa interpretação da Lei Maior, ganhando, em consequência, a pecha de interferir na esfera política. Insinuação, claro, originada em fontes congressuais.
Por último, a corrosão da imagem do Judiciário leva em conta sua complexa modelagem. Dispomos de cinco tipos de Justiça, duas comuns (estadual e federal) e três especiais (trabalhista, militar e eleitoral); e de quatro instâncias (juiz local-tribunal local, Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal, Superior Tribunal de Justiça e STF; ao lado de estruturas como Ministério Público, Defensorias Públicas, Procuradorias, Polícias Civil e Militar (estaduais e federal) e Guardas Municipais. Nossa condição é sui generis no mundo, garante o desembargador José Renato Nalini, corregedor-geral do TJSP, que calcula haver mais de 50 oportunidades para se reapreciar a mesma questão. Os milhões de processos que desembocam nos quase cem tribunais e nas cinco Justiças incorporam, na visão de Nalini, um peculiar demandismo, responsável pelo alargamento de nossa litigância. Só em São Paulo entraram, em 2010, 521.534 processos, que se juntaram aos 714 mil pendentes, gerando uma taxa de congestionamento de 63,2% - relação entre o estoque de ações e o volume de casos resolvidos. Não por acaso, continua a se propagar o discurso da insegurança jurídica (entrave a investimentos), sob os passos de tartaruga de nossa Justiça. Nesse ponto se cruzam os tiros sobre o Judiciário, provenientes da vanguarda política, de retaguardas corporativas do próprio sistema - como se viu na pendenga sobre as fronteiras de atuação do CNJ -, de sistemas produtivos e de núcleos de operadores do Direito, como a Ordem dos Advogados do Brasil, além de entidades sociais.
Sair incólume desse tiroteio é coisa para filme de ficção. Ainda mais quando o ator parece cultivar o gosto de ser alvo permanente. Donde se pinça a tese de que o corpo judiciário deve tomar os remédios para sanar as feridas que o consomem. Urge resgatar a força moral que encarna (como se viu na votação do STF sobre as funções do CNJ). Exercício que implica ainda apaziguamento de ânimos e cultivo de valores que abrilhantam o perfil do juiz: amor à verdade, circunspecção, zelo, sapiência e, sobretudo, isenção para julgar.
Bacon volta à ordem do dia.
*Profº Gaudêncio Torquato é jornalista e professor