O episódio do mensalão, que poderá ser julgado no Supremo Tribunal Federal (STF) ainda neste semestre, apresenta-se como um dos mais emblemáticos da história jurídica do País. Sua singularidade começa com o número de acusados, 38, atravessa a montanha de três centenas de volumes, fora os apensos, para abarcar cerca de 600 testemunhas. A polêmica que reacende ocorre às vésperas de uma campanha eleitoral e no momento em que uma CPI se forma para investigar o escândalo mais recente de corrupção na esfera política, devendo a decisão ser tomada - se o processo for de fato a julgamento - sob a presidência de um ministro que permanecerá apenas sete meses no comando da Corte. Vale lembrar que o caso ganha acesa polêmica sob imagens contrastantes: de um lado, avoca-se papel “mais ativo e progressista” para o STF; de outro, surgem borrões sobre situações vividas por magistrados em instâncias da Justiça. Vê-se ainda o balão da opinião pública pairando sobre a cabeça dos julgadores e, por último, se distingue a argumentação levantada por implicados alicerçada na tese de que os ministros devem julgar o caso sob o prisma técnico, e não político. O novelo tem fios com as cores do arco-íris.
A começar pela visão modernizante proporcionada pelo STF a partir de decisões recentes, como reconhecimento da união homoafetiva, liberação da marcha da maconha e legalização do aborto de fetos anencéfalos, é razoável supor que o mensalão, em seu grand finale, seja encurralado no paredão da ilegalidade. A expectativa é que o evento, como outros escândalos, seja extirpado da cena institucional. Donde emerge o dilema: o juiz deve ou não abrir os ouvidos ao clamor social? O juiz, diz a lição, não deve ser vassalo da sociedade. Os ditames da Justiça recomendam que julgadores devem apartar interesses de uns e outros, acusados e acusadores, separar a faceta política do escopo técnico, elevando o corpo de provas ao alto patamar do julgamento. É impossível, porém, fechar os olhos ao eco do povo. O exercício consiste em juntar as partes no todo, unir o particular ao global e chegar, na expressão de Bacon, à rota da justa sentença, “como Deus costuma abrir o seu caminho elevando os vales e abaixando montanhas; de maneira que, se aparecer, ao lado de uma das partes, um braço poderoso, uma pressão violenta, astuciosas vantagens, combinações, nesse caso a virtude do juiz consiste em nivelar as desigualdades para poder fundar sua sentença em terreno plano”.
Não é fácil definir “prisma técnico”, como pregam agentes envolvidos no mensalão, em meio a núcleos variados: político, financeiro, publicitário, ao lado da tessitura que liga uns a outros, sob fartas provas documentais e testemunhais, algumas plenas de evidências, outras escassas de concretude ou deixando dúvidas. Não haveria um “celofane político” embalando os “pacotes técnicos”? A materialidade dos crimes de formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro, todos com prova documental, não se reveste de caráter político? Eis a questão a ser respondida pelos 11 ministros do STF. O clima ambiental tende a influenciar a Corte?
Leve-se em conta que a CPI formada para investigar as atividades de Carlos Cachoeira e suas ligações com as áreas política e empresarial deve acender fogueiras, acirrar ânimos partidários e tumultuar o fluxo de decisões no Parlamento. O ambiente institucional poderá esfumaçar-se. Percepção final: fogo generalizado deixa só uns poucos a salvo. Se o sergipano Ayres Britto, exímio intérprete da lei - como deixou transparecer na bela peroração de posse no STF - e artesão da expressão jurídica, lograr o feito de comandar o julgamento do mais rumoroso caso de corrupção da contemporaneidade, entrará na galeria dos modeladores do moderno Judiciário brasileiro. Britto é um ponto de exclamação no rol de indagações que fragmenta a vida nacional. Sabe ler a alma do homem da rua. Entende que o espírito do Supremo deve impregnar-se da aura social. Filtrando, claro, os raios que podem ferir o corpo jurídico. Como poeta, canta os sentimentos coletivos. Assume com convicção o papel de missionário. Desfralda a bandeira de mudança de paradigmas. Veste o traje de independência do juiz sem deixar de lembrar que já foi militante partidário. Tem compromisso com a clareza. Afinal, a transparência, pilar da democracia, é o território contra o poder invisível, biombos e coxias.
Se em sete meses conseguir, como julgador e presidente do STF, fazer valer o ideário da dignidade - realçando leis como as da Ficha Limpa, da Improbidade Administrativa, Maria da Penha e as normas contra o cancro da corrupção -, poderá recolher-se em paz ao abrigo compulsório da aposentadoria aos 70 anos. Aliás, um luxo de país que comete a estultice de desprezar experiência, prestígio e energia criadora de quadros no auge de sua sabedoria e elevação espiritual.
Por último, oportuno ressaltar que o Judiciário também enfrenta seu calvário. Se é o Poder de que mais se exige pudor e respeito à ética, a verdade se impõe: não é imune ao erro. Precisa também ser objeto de investigação. Aos juízes, recomenda-se refletir sobre o canto poético de Carlos Ayres Britto: façam como as garças, que vivem em ambientes enlameados, mas executam uma coreografia cuidadosa que preserva a alvura de suas penas.
*Profº Gaudêncio Torquato é jornalista e consultor político