O desencanto com a vida pública não pode paralisar os brasileiros que têm de sobreviver, a despeito da ausência de Estado. As vozes otimistas que reconhecem os tempos terríveis que nos são dados vivenciar, pregam a urgência de micro-revoluções, de reações individuais ou de pequenos grupos, com o intuito de enfrentar problemas aparentemente insolúveis, para mostrar que o governo não é imprescindível. A vida tem jeito, mesmo com ele ruim.
Um dos exemplos de que tomo conhecimento é o das cisternas que têm sido construídas no Nordeste. A cisterna é uma das medidas levadas a sério pela Articulação do Semiárido Brasileiro – ASA, que agrega 3 mil organizações em dez Estados.
Um quinto do território brasileiro é atingido pela seca, um flagelo crônico do sertão nordestino. Mas 1,2 milhão de famílias já conta com a cisterna que permite o sustento próprio, a criação de animais e o cultivo de hortaliças e grãos.
Isso começou quando, em meados de 1950, Manoel Apolônio, o Nel, deixou Simão Dias, no Sergipe, e veio tentar a vida em Sampa. Aqui foi servente de pedreiro e aprendeu a construir piscina redonda. Conheceu a técnica que junta placas de areia e cimento para criar o formato circular e pensou que poderia fazer isso para armazenar água.
Desenvolveu as primeiras cisternas na Bahia, para amigos e vizinhos, em mutirão. Com capacidade de 16 mil litros, recebe água da chuva e abastece família de cinco pessoas por seis a oito meses. A água dos telhados segue por uma calha conectada à cisterna ao lado da casa. A invenção foi reconhecida como tecnologia social, solução simples de amplo impacto, vinda do conhecimento de alguém da própria comunidade, capaz de mudar uma realidade.
Nasceu o Programa Um Milhão de Cisternas – P1MC, adotado como política pública pelo Governo em 2001. A cisterna de placas pré-moldadas é certificada pelo Banco de Tecnologias Sociais da FBB, hoje com 986 iniciativas. São conhecimentos que, compartilhados, mudam a realidade. O bom é que a cisterna deixou de alimentar a tradicional “indústria da seca”, hábil em obras mirabolantes e vulneráveis à endêmica corrupção.
Quantas outras iniciativas não poderiam gerar respostas para problemas que o governo, mais interessado em sobreviver, não quer enxergar? Se o governo não funciona, a cidadania tem de funcionar.