Acontece.
E num terrível dia nublado, chuvoso e frio, você se encontrará no centro de uma cidade qualquer, carregando três esfirras abertas de coalhada, e com um sentimento indefinível, uma quase tristeza, de um quase abandono, e, - merd alors! - vou comer essas esfirras assim que chegar em casa.
Uma casa quentinha no inverno, com as coisas que você ama - todas nos seus devidos lugares, senão não dá nem pra dormir -, um ninho, é a segurança primeira que todo ser precisa, qualquer ser.
Nos dias quentes, com o sol dando o ar da graça, vá lá, não tem muito como se sentir abandonado pela sorte, ou triste, que azar.
Mas num dia nublado e frio, você é essencialmente a ovelha desgarrada, mesmo que as demais ovelhas estejam bem pertinho e o pastor mais ainda; você está só no mundo, e molhado até a alma, que horror!
O inverno impõe comunhão, reunião.
O caso é que nos dias que correm muita comunhão não é aconselhável, mesmo a de dois; quando pelo menos dois se reúnem tem sempre alguém caindo do 5o. ou 6o. andar - ou se atirando; na maioria das vezes, se atirando.
Tempos, muito, muito, estranhos.
Na verdade, o século XXI, vem se revelando o século da gente estranha.
Todos alucinados em ganhar dinheiro - a preços altíssimos -, ao custo de suas vidas, e sem tempo algum para qualquer outra coisa.
As relações todas reduzidas a oi e tchau, e, claro, todo mundo treinando pra se abaixar na hora certa, porque não é mais rasteira de todo lado, agora é tesoura voadora - de todo lado.
Não é que estejamos vivendo um ensaio sobre a cegueira: já é a cegueira pronta e acabada.
É cego conduzindo cego - e todos com muita pressa.
Para chegar a lugar nenhum, apenas gastar dinheiro na caminhada - porque, sabe como é, tem sempre alguém usando óculos, e, em terra de cego ...
E, então, onde viemos parar?
Bem, quanto a mim, vou tomar um bom banho quente, comer minhas esfirras, correr para debaixo do edredom, e ler sobre a 2a. Guerra Mundial -, é preciso ter espírito prático.