Sempre gostei de coturnos, desde que me lembre.
Ainda quando não era moda, sempre usei coturnos.
Com o calorão e tudo, lá estava eu, também no alto verão, com meus coturnos e vestidos. Floridinhos. Os vestidos, não os coturnos.
Um belo dia, reparando bem em uma foto de minha infância - deveria ter eu uns três anos -, foi que compreendi o porquê da preferência.
Ali estava uma garotinha de franjinha, vestidinho branco e sapatinhos idem, com um pezinho atrás - acanhada, tímida.
Garotas sempre devem estar com o pé atrás, não resta a menor dúvida - e isto a vida inteira -, mas notei ali uma certa indecisão, uma certa falta de firmeza.
Uma garotinha aparentemente insegura - apesar dos olhos espertos embaixo da franjinha disciplinada.
Foi, então, que me ocorreu – os olhos; os olhos sabiam exatamente o que queriam, mas os pés, acanhados no sapatinho branco, demonstravam falta de segurança.
Os olhos são o espelho do que você é; os seus olhos dizem quem você é - é inapelável -, e não adianta: se o mundo não te assombra, se você traz consigo a certeza de saber-se e respeitar-se, não há vestidinho branco ou sapatinho que escondam sua coragem - o que farão é justamente o oposto: trazer a imprecisão à imagem.
Com coturnos isto não ocorre. Com coturnos se tem estabilidade, solidez, segurança, convicção, desassombro. Coragem.
Daí que coturnos a mim me retratam como sou, ou o que sou, e daí porque me sinto à vontade com eles; estou em meu elemento: determinação - e pé na porta, quando é necessário, sabe como é.
Houve época em que usei sapatos elegantes de salto alto e tudo - muito salto alto e tudo.
Até o dia em que caí na real: mas por que cargas d’ água criatura, você está andando o dia todo, e todos os dias, pra lá e prá cá, com esses sapatos que te cansam tanto; mas é acima de quem mesmo que você está querendo mostrar que está? E o dia todo? O tempo todo?
E saltos altos nunca mais.
Cresci muito.
Agora, sandálias rasteirinhas, que não sejam para descanso, não dou conta.
Rasteiras prá lá e rasteiras prá cá, todo dia, e no trabalho? Talvez na Grécia antiga, mas hoje?
Rasteiras são o epítome da falta de compromisso - com o que quer que seja.
Jamais dei conta de usar, que não fosse na praia: é muita lassidão.
Talvez representem alguma coisa muito intelectual prá mim: a imagem, ou a ilusão, de que se está além do mundo e de suas misérias - uma narrativa ideológica.
Ou uma narrativa de que se resolvem problemas com ideologias. Ou mais narrativas.
De toda forma, ideologia e narrativa demais pra mim - me dá até náusea.
Com coturnos isto não ocorre: são para o trabalho, para o muito que se tem a fazer.
Pra quem não tem tempo nenhum a perder. Pra quem não aguenta conversa demais.
Pra quem tem os pés no chão.