Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
É hora de elaborar o texto para o jornal e, como estou trabalhando em um novo romance, mudo o foco para outra frequência. A dinâmica do romance difere em muitos aspectos daquela que se emprega nas narrativas curtas; é preciso, pois, como se diz popularmente, virar a chave. Fecho o arquivo do novo romance e, bruscamente, lembro de minha velha turma de boêmios, das reuniões com os mendigos e do Altino Sócrates.
Altino Sócrates apareceu na cidade no meio da madrugada, por isso foi recepcionado por boêmios e corujas. Apresentou-se como Altino, apenas Altino, posteriormente nós acrescentamos o Sócrates, pois percebemos que Altino tinha a marcante característica do filósofo grego que, em Atenas, foi chamado de: o homem que conversava.
Nosso grupo de boêmios era formado por jovens cuja média de idade era de vinte e cinco anos; Altino Sócrates tinha cerca de quarenta, e conversava sobre quaisquer temas. Era um homem de conhecimento multifacetado. Naquele tempo o conhecimento estava nas pessoas e não fora delas, em algum site de busca, como hoje está.
Três vezes por semana nosso grupo de boêmios fazia reuniões com os mendigos para um bate-papo informal. Todos tinham voz e, simbolicamente, proclamavam leis, e sempre contávamos com a presença de um violão. Foi em uma reunião com os mendigos que o Altino – até então apenas Altino – apareceu, e seu primeiro ato foi recitar poemas de Neruda e cantar músicas de Taiguara – compositor que lutou contra a repressão artística imposta pelo regime militar, teve várias de suas músicas censuradas e foi exilado. Hoje, quase ninguém sabe quem foi Taiguara, mas o Altino o conheceu pessoalmente. E no final da mencionada reunião, Altino disse:
“Guardadas as devidas proporções e particularidades, esse tipo de reunião nos remete à democracia ateniense, que assegurava aos cidadãos o exercício da função legislativa, como integrantes da Ekklesia, a Assembleia Popular.”
Altino Sócrates passou a participar de todas as reuniões com os mendigos.
Hoje, décadas depois, esforço-me, mas não consigo recordar o que levou nosso grupo a falar sobre leite pasteurizado, entretanto, recordo com total clareza que, de modo a um tempo jocoso e profético, Altino Sócrates sentenciou:
“No futuro, as pessoas vão achar que pasteurizar leite é colocá-lo numa embalagem em forma de pastel, e não aquecê-lo a temperatura inferior ao seu ponto de ebulição e resfriá-lo bruscamente, a fim de destruir os germes patogênicos sem, contudo, alterar o sabor a qualidade nutritiva”, fez uma pausa, fitou um ponto imaginário do futuro e, emblemático, concluiu, “ninguém vai ter capacidade intelectual para associar o termo pasteurizado a Louis Pasteur, o químico e biólogo francês, as pessoas estarão receptivas à estupidez e seguirão cegamente a idiotice.”
Recordo-me que, no final de uma reunião com os mendigos, Altino Sócrates fez um pronunciamento de cerca de dez minutos. Ainda agora, posso ouvir as palavras que ele usou para fechar o breve discurso:
“Lembrem-se que, quando um homem precisar da ajuda de um santo e não tiver nenhum santo por perto, o problema poderá ser solucionado de maneira bem simples: basta que o referido homem exerça sua própria santidade.”
E depois que disse isso, Altino Sócrates desapareceu. Nunca mais foi visto pelos boêmios do grupo. Onde andarão os mendigos? E nosso amigo A. Sócrates?...
E o que estamos fazendo com o mundo? Pergunto-me. E com um pesar que não sei ao certo donde vem, viro novamente a chave e recomeço a escrever o romance.