Eles foram acusados de registrar em boletim de ocorrência que o autor de um roubo fugiu do local do crime antes da chegada da Polícia Militar, quando, na verdade, o homem foi capturado, mas escapou da delegacia
Antiga Central de Flagrantes, na avenida América, de onde o preso fugiu (Johnny Torres/Jornal Diário da Região 3/1/2018)
A Justiça condenou um delegado e um investigador da Polícia Civil pelo crime de falsidade idelógica no registro de um boletim de ocorrência em Rio Preto. A decisão, do último dia 18 de agosto, é da juíza Luciana Cassiano Zamperlini Cochito, da 1ª Vara Criminal de Rio Preto, e se refere a uma ocorrência de 2018, em que consta que o autor de um roubo fugiu do local do crime antes da chegada da Polícia Militar, quando, na verdade, foi capturado, levado até a delegacia e fugiu pela porta da frente da unidade.
Apesar de a defesa dos policiais alegar que não houve intenção de falsificar o registro da ocorrência e que tudo não teria passado de um mal entendido, a juíza condenou o delegado Marcelo Goulart da Silva a dois anos e oito meses de reclusão em regime inicial fechado, além do pagamento de 26 dias-multa (o equivalente a 13 salários mínimos). Condenou ainda o investigador Homero de Freitas Gorjon à prestação de serviços à comunidade por dois anos e quatro meses e pagamento de três salários mínimos. Ambos estão aposentados e poderão recorrer em liberdade.
O caso
Conforme relatório da juíza, a falsidade ideológica da qual delegado e investigador foram acusados aconteceu no dia 10 de abril de 2018, quando, durante a madrugada, Otávio Silva de Oliveira invadiu a residência de um casal para roubar e acabou entrando em luta corporal com o dono da casa, enquanto a mulher acionou a Polícia Militar.
Duas viaturas da PM foram até o local. Os policiais Flávio Félix da Silva e Marcus Macedo Dela Giustina conduziram Otávio até a Central de Flagrantes, onde ele foi mantido sem algemas no saguão e acabou fugindo.
O casal vítima do roubo estava no interior da delegacia quando a fuga aconteceu. Segundo a denúncia apresentada pelo Ministério Público à Justiça, um tenente teria dito ao casal, na presença do delegado, que eles precisariam "aliviar para os meninos", referindo-se aos policiais militares que fizeram a prisão do acusado.
O homem e a mulher, que já conheciam o delegado, teriam questionado-o sobre a proposta, mas ele teria permanecido em silêncio. O casal foi embora antes da finalização do boletim de ocorrência, que foi registrado como se a fuga tivesse ocorrido antes da chegada da Polícia Militar. "Quando a guarnição da PM chegou, o indivíduo já havia se evadido", consta no histórico do BO.
A defesa
Durante o processo, a defesa do delegado Marcelo sustentou "atipicidade" e "crime impossível", enquanto que a defesa do investigador Homero alegou "fragilidade probatória".
O delegado afirmou, tanto na fase policial quanto em juízo, que estava sofrendo com cólicas renais — o que foi confirmado por outros policiais que estavam de plantão durante aquela madrugada —, e que estava na cozinha no momento da fuga. Ele negou que tenha sugerido alguma estratégia para isentar os policiais militares ou que tenha feito qualquer proposta para alterar os fatos no registro.
Já o investigador sustentou que também não estava bem de saúde naquele dia, com problemas de pressão, e não presenciou a fuga, já que estava descansando em um cômodo nos fundos da delegacia, com autorização do delegado. Segundo o relatório da juíza, o policial frisou que o delegado não o orientou, em nenhum momento, a "falsear com a verdade" e que a orientação era para que constasse que o autor do roubo fugiu na delegacia, "mas que se equivocou durante a confecção do registro da ocorrência."
O tenente da Polícia Militar, que não é réu no processo mas foi mencionado pelo casal como o autor da proposta para "aliviar para os meninos", alegou que apenas pediu desculpas às vítimas do roubo e "prometeu o máximo de empenho da Polícia Militar para a localização e recaptura do infrator". Disse ainda que informou aos policiais militares envolvidos na ocorrência que eles responderiam pela falha.
A decisão
Apesar das alegações dos acusados, a juíza entendeu que a materialidade do crime de falsidade ideológica foi comprovada, que o delegado mandou e o investigador inseriu no boletim de ocorrência "declarações falsas" com a finalidade de "alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante".
Para a juíza, a "alegação de que foi um 'equívoco' cai por terra com as imagens da Central de Flagrantes", que mostram que não havia nenhum tumulto no local e que aquela era a única ocorrência que estava sendo registrada naquele momento.
A magistrada ressalta ainda que o crime foi cometido por um delegado e um investigador de polícia, dos quais se espera que "ajam com lisura em seus atos e não compactuem com práticas ilícitas".
Os dois respondem a uma outra ação, na 2ª Vara da Fazenda Pública, por improbidade administrativa. O processo está com a juíza Tatiana Pereira Viana Santos e a audiência de instrução e julgamento está marcada para o próximo dia 15 de setembro.
A recaptura
A fuga de Otávio não durou muito, mas o suficiente para que ele deixasse a cidade. O acusado do roubo foi recapturado pela Polícia Militar na noite seguinte, em Catanduva.
Otávio foi condenado em agosto de 2019, pela juíza Carolina Marchiori Bueno Cocenzo, da 3ª Vara Criminal de Rio Preto, a pena de quatro anos, oito meses e 26 dias de reclusão em regime inicial fechado, além do pagamento de multa de 1/30 do salário mínimo, sem a possibilidade de recorrer em liberdade.
O dois policiais militares diretamente envolvidos na ocorrência foram punidos pela Justiça Militar, em razão da fuga, com oito dias de prisão administrativa.
*Com informações Gabriel Vital - Diário da Região