Hoje vigora vastamente uma erosão de valores éticos que normalmente eram vividos e transmitidos pela família e depois pela escola pela sociedade. Essa erosão fez com que as estrelas-guia do céu da ética ficassem encobertas por nuvens de interesses danosos para a sociedade e para o futuro da vida e do equilíbrio da Terra.
Não obstante esta obscuridade, importa reconhecer também a emergência de novos valores ligados à solidariedade internacional, ao cuidado para com a natureza, à transparência nas relações sociais e à rejeição de formas de violência política repressiva e da transgressão dos direitos humanos. Mas nem por isso diminuiu a crise de valores, especialmente no campo da economia de mercado e das finanças especulativas que são as instâncias que definem os rumos do mundo e o dia-a-dia dos assalariados, vivendo sob permanente ameaça de desemprego.
As crises recentes denunciaram máfias de especuladores instalados nas bolsas e nos grandes bancos cujo volume de rapinagem de dinheiros alheios quase levou à derrocada todo o sistema financeiro mundial. Ao invés de estarem na cadeia, depois de pequenos rearranjos, tais velhacos voltaram ao antigo vício da especulação e do jogo de apropriação indébita dos “commons”, dos bens comuns da humanidade (água, sementes, solos, energia etc.).
Esta atmosfera de anomia e de vale-tudo que se espraia também na política, faz com que o sentido ético fique embotado e as pessoas diante da geral corrupção se sintam impotentes e condenadas à amargura ácida e à resignação humilhante. Neste contexto muitos buscam sentido na literatura de auto-ajuda, feita de cacos de psicologia, de sabedoria oriental, de espiritualidade com receitas para a felicidade completa, ilusória, porque não se sustenta nem se apóia num sentido realista e contraditório da realidade. Outros procuram psicólogos e psicanalistas que recebem dicas melhor fundadas. Mas no fundo, tudo termina com os seguintes conselhos: “dada a falência das instâncias criadoras de sentido como as religiões e as filosofias, devido à confusão de visões de mundo, da relativização de valores e do vazio de sentido existencial, procure você mesmo seu caminho, trabalhe seu Eu profundo, estabeleça você mesmo referências éticas que orientam sua vida e busque sua auto-realização. “Auto-realização”: eis uma palavra mágica, carregada de promessas.
Não serei eu que vá combater a “auto-realização” depois de escrever “A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana”(Vozes 1999), livro que estimula as pessoas a encontrarem em si mesmas as razões de uma auto-realização sensata. Esta resulta da sábia combinação da dimensão de águia e da de galinha. Quando devo ser galinha, quer dizer, concreto, atento aos desafios do cotidiano e quando devo ser águia que busca voar alto para, em liberdade, realizar potencialidades escondidas. Ao articular tais dimensões, cria-se a possibilidade de uma autorrealização bem sucedida.
Penso que esta autorrealização só se consegue se incorporar seriamente três outras dimensões. A primeira é a dimensão de sombra. Cada um possui seu lado autocentrado, arrogante e outras limitações que não nos enobrecem. Esta dimensão não é defeito, mas marca de nossa condição humana, feita da união dos contrários. Acolher tal sombra, cuidar que seus efeitos maléficos não atinjam os outros, nos faz humildes, compreensivos das sombras alheias e nos permite uma experiência humana mais completa e integrada.
A segunda dimensão é a relação com os outros, aberta, sincera e feita de trocas enriquecedoras. Somos seres de relação. Não há nenhuma autorrealização cortando os laços com os demais.
A terceira dimensão é alimentar certo nível de espiritualidade. Com isso não quero dizer que a pessoa deva se inscrever em alguma confissão religiosa. Pode até ocorrer mas não é imprescindível. O importante é abrir-se ao capital humano/espiritual que, ao contrário do capital material, é ilimitado e feito de valores como a verdade, a justiça, a solidariedade e o amor. É nesta dimensão que emerge a questão impostergável: que sentido tem, afinal, minha vida e o inteiro universo? Que posso esperar? A volta ao pó cósmico ou ao abrigo num Útero divino que me acolhe assim como sou?
Se esta última for a resposta, a autorrealização traz profundidade e uma felicidade íntima que ninguém pode tirar.
*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor