Se a bola de cristal é o objeto de desejo dos atores políticos em ano eleitoral, que procuram saber se seu futuro será venturoso ou inglório, imagine-se a importância que sobre ela se deposita quando o País se prepara para remodelar toda a base de seu edifício político sob a égide de dois fenômenos: a mudança na composição demográfica e a nova geografia do voto. No lugar ocupado outrora por ciganas adivinhas, que em tempos bucólicos tomavam as praças das cidades para mostrar aos transeuntes as pistas do amanhã, temos hoje as pesquisas de opinião. São essas as modernas bolas de cristal que procuram identificar posições alcançadas por candidatos e alçadas administrativas no sistema de avaliação social. Elas serão, nos meses a seguir, a maior atração dos habitantes do planeta eleitoral, ansiosos para conhecer suas chances de vitória no pleito que mobilizará a população de 5.564 municípios.
As sondagens, como se sabe, flagram percepções momentâneas, sendo tarefa complexa e muitas vezes incontornável distinguir a intensidade e a direção das emoções humanas. Faz-se a ressalva para aduzir que as eleições de outubro, a par de fatores imprevisíveis que costumam desmontar visões e projeções, ocorrerão na sombra de misteriosa indagação: qual é o pensamento político da classe C?
Antes de enveredar pela trilha, convém pinçar dados que realçam a força desse grupamento, a começar pela lembrança de que a classe C absorveu nos últimos anos cerca de 40 milhões de brasileiros, chegando à soma de 53% da população e devendo alcançar os 60% em 2014. A transformação efetiva da pirâmide social em losango, com as camadas médias passando a ser maiores que as de baixo e as de cima, implica alteração substantiva na geografia eleitoral? A ascensão de uma classe na escada social muda sua visão da política? Ou, ainda, o voto do eleitor será influenciado pela conquista de renda superior à que detinha na eleição anterior?
Eventuais respostas começam pela relação entre os avanços alcançados pela classe C e as novas atitudes que passou a tomar. A principal conquista deu-se no plano da renda. A radiografia mostra que cerca de 105 milhões de brasileiros alçaram ao patamar do poder de compra, dado que tem servido para planejar o sistema de vendas. A partir daí se fotografou um corpo social mais otimista que outros, mais aberto ao circuito dos amigos, mais fiel às marcas do mercado, mais seletivo, objetivo e descomplicado.
Revelações interessantes pipocam. Na classe C os formadores de opinião, ao contrário do que ocorre em outras, não são os mais velhos ou os mais experientes, mas os jovens, que estão bem empregados, são bem-educados e conectados ao mundo. São eles que mostram a realidade aos pais. Outra faceta interessante, segundo o pesquisador Renato Meirelles, é o fato de que os emergentes procuram autenticidade. Se a velha sociologia pregava que o sonho recorrente de uma classe era ascender à posição da classe acima, o paradigma agora é outro. Os componentes da nova classe fazem ácidas críticas aos gastos e comportamentos perdulários dos habitantes dos andares de cima. Os ricos, para eles, não são exemplo de vida. Qual é sua aspiração? Quem os motiva é o perfil que veio de baixo, lutou, conseguiu, alçou voo e hoje realiza seu sonho com seu negócio.
Onde está a nova classe? O Sudeste abriga o maior contingente, com 48,2%, vindo o Nordeste na sequência, com 22,6%, e o Sul, em terceiro, com 17,4%. As três regiões contam com 93 milhões de habitantes. Outra abordagem para medir a força do contingente é o gasto com consumo: em 2009 a classe C (renda familiar entre R$ 1.200 e R$ 4.900) gastou R$ 881 bilhões do total de R$ 2,2 trilhões do País. O salto na área educacional também impressiona: entre 2002 e 2010 os eleitores de nível universitário dessa classe saltaram de 6 milhões para mais de 9 milhões, devendo chegar aos 11 milhões em 2014; na área do ensino médio, os 48 milhões de eleitores do ano passado passarão a 52 milhões em 2014. Saltos, avanços, melhoria de padrão de vida sinalizam maiores exigências na esfera da representação política? Essa é a pergunta que movimentará as bolas de cristal, cada vez mais escassas nos terreiros eleitorais. Vamos às pistas. A alma do eleitor do “Brasil da distribuição de renda e do acesso ao crédito” continua conservadora, fiel aos ritos religiosos, éticos e normativos. É, porém, mais exigente: quer do Estado serviços mais qualificados, a partir da saúde, segurança e educação.
Outra indicação: cultiva o amor à região que o abriga. Por conseguinte, suas necessidades passam pelas demandas do mundo que habita. Seu bairro é o centro das atenções. As questões abrangentes da metrópole soam como abstrações aos ouvidos do eleitor encastelado em sua célula. O cidadão da classe C quer ver o candidato, olho no olho, com soluções claras, simples, factíveis para os setores que afetam seu cotidiano. Os laços de família, a tradição religiosa (os cultos expandem-se na paisagem urbana), os hábitos da região vão plasmando uma comunidade solidária, fraternal, exigente. Sob a perspectiva da política, é razoável supor afinação mais estreita com a representação próxima à causa comunitária. O discurso local vence a expressão global.
Mudou, sim, o tamanho do bolso da classe. E aqui é possível estabelecer uma conexão estreita entre renda e política. A hipótese é de que se forma uma nova geografia do voto, começando na região do bolso - que precisa ser bem suprido e, claro, preservado. A garantia de bolso cheio implica manutenção do status quo. Essa será a condição para a geladeira cheia de produtos. Que preservarão o instinto de sobrevivência, barriga satisfeita, segundo ponto na geografia eleitoral. Uma ponte de agradecimentos liga o estômago saciado ao coração, terceiro espaço geográfico. Culmina o processo com a mensagem que sai do coração para a cabeça. Daí sairá a decisão do voto. A rota, como sói acontecer na política, pode ter muitos desvios.
*Profº Gaudêncio Torquato é jornalista e professor