Na maioria das culturas, desde tempos imemoráveis, existe a figura do palhaço, que pode ter os mais diversos nomes: bobo, bufão, clown, tolo, idiota, ignorante, e muitos outros. Ao lado do rei, do imperador, do faraó, do sultão ou do presidente, esse bobo faz figura de ingênuo e ignorante. Mas não é bem assim, pois a figura sisuda, demasiadamente séria, do homem que representa a suprema autoridade e vive rodeado de um cerimonial repetitivo e enfadonho, necessita a seu lado a figura brincalhona que significa o limite, a fragilidade e a provisoriedade do poder. Um bom governo é composto de um rei e de um bobo: seriedade e senso de limite, sisudez e humor. A conjunção resulta em sabedoria e arte de governar.
Nos tempos do império romano, quando o imperador passava pelo arco do triunfo e recebia as supremas honras, o cerimonial exigia que houvesse a seu lado uma pessoa que lhe sussurrava continuamente no ouvido as seguintes palavras: ‘memento mori’ (lembre-se: você também é mortal). E na corte dos reis medievais, em meio às mais solenes sessões, o bobo da corte agitava de vez em quando, rindo e dançando, um espelho diante da face do rei, como para dizer: ‘veja as besteiras que você está fazendo!’. Na literatura não falta a figura do bobo. Dom Quixote sempre sonha com os mais elevados ideais, mas ele vai acompanhado de Sancho Pança que só pensa em ‘sombra e água fresca’. Reis e rainhas das comédias de Shakespeare, Corneille e Racine, sempre têm seus (suas) ‘confidentes’, que lhes dizem a verdade. E Dostoievski, quando quer contar a história de um homem realmente bom, o chama de ‘idiota’. O bom governo necessita de idiotas. Eles são fundamentais para o bom andamento da sociedade, pois, ao mesmo tempo em que incomodam, mostram os limites de tudo que se quer realizar na vida. Eles apontam para a sabedoria. Só um rei, imperador, sultão ou papa que se mostra capaz de escutar o bobo conquista a sabedoria e faz um bom governo. A bobagem é o caminho da sabedoria, a ironia o contrapeso da autoridade.
Os padres desobedientes da Áustria e da Irlanda bem que poderiam ser hoje os bobos da corte do Vaticano a lembrar que a boa vontade do papa não pode fazer com que ele feche os olhos diante da precariedade e dos limites de seu projeto. Da mesma forma os teólogos da libertação na América Latina ou os teólogos desobedientes da Espanha. Mas parece que o papa atual não vê as coisas desse modo e isso constitui uma ameaça ao bom andamento da igreja. Em vez de procurar alguma centelha de verdade nas ideias desses padres, o papa fala em ‘desobediência’. A impressão que algumas de suas declarações recentes deixam é que ele anda enxergando, em seu redor, sombras que assustam; armadilhas e armações, conciliábulos, sussurros nos cantos do palácio e nos imensos corredores.
O psicólogo Jung nos ensina que essas impressões ameaçadoras bem poderiam ser expressões de desejos não confessáveis e sentimentos reprimidos.
É nesse momento que se sente a falta do saudável bobo da corte a trazer a realidade como ela é e lembrar que as coisas nem sempre são como a gente quer. Tudo, afinal, pode ser diferente.
Quando alguns cardeais foram aconselhar o papa João XXIII a não convocar um Concílio, pois tudo corria normalmente na igreja e seria uma despesa inútil, ele simplesmente se levantou e abriu uma janela da sala. Uma lufada de ar fresco penetrou nos sagrados recintos do Vaticano (que cheiram a mofo).
Em plena sessão do Concílio Vaticano II, Dom Helder sonhou que, de repente, o imperador Constantino irrompia de cavalo na nave central da imensa basílica de São Pedro. Num outro sonho, igualmente saudável, ele se imaginou que o papa tinha ficado louco, jogou sua tiara no rio Tibre e dançava cantando pelas ruas de Roma.
Hoje, penso que, para ser um bom católico, há de se cultivar um pouco de saudável ironia. Ao me aproximar de teólogos da libertação da primeira geração, como Gustavo Gutiérrez, José Comblin e Juan Luís Segundo, sempre me impressionou seu espírito de humor. Eles sabiam relativizar e manter a esperança, eles cultivavam a ironia. Mas hoje estamos vivendo numa igreja à qual se aplica a palavra de Millôr Fernandes: ‘para que ser o bobo da corte se o rei não tem espírito de humor?’.
*Eduardo Hoornaert é historiador e teólogo