Os dois maiores problemas brasileiros são a segurança pública e a corrupção. A percepção da população, apurada por pesquisas de opinião, ampara-se em fundamentos ligados à própria sobrevivência, no caso, fatores que abrigam os mecanismos de conservação do indivíduo: os impulsos combativo e alimentar. O primeiro explica que a vida do ser humano é uma luta permanente contra a morte, um combate ininterrupto contra os perigos. Daí a prioridade absoluta que deposita em propostas - meio, recursos, ações, política - para sua segurança. Já o segundo leva as pessoas a buscarem os insumos e as condições que lhes garantam bem-estar físico e espiritual para enfrentar os desafios. Nesse nicho entra a vertente da corrupção, percebida como o conjunto de desvios, contrafações e ilícitos que resultam na apropriação de recursos públicos destinados ao bem-estar da coletividade. Em outros termos, os cidadãos inferem que corruptos e corruptores surrupiam milhões de reais que lhes pertenceriam, o que diminui a possibilidade de contar com um bolso mais polpudo e, assim, garantir o estômago mais saciado. Sob essa compreensão, que se pode depreender da visão de Serge Tchakhotine (A Mistificação das Massas pela Propaganda Política), a sociedade vê com alegria a notícia de que o Brasil dá mais um passo na guerra contra a corrupção.
O motivo de esperança é a decisão da Comissão de Juristas do Senado que classifica como crime o enriquecimento ilícito de servidores públicos, sejam modestos funcionários, políticos, dirigentes de empresas e órgãos ou juízes. Trata-se de mais uma ferramenta a ser incorporada ao Código Penal, que já contempla larga faixa de crimes contra a administração pública, como peculato, extravio, sonegação, inutilização de documentos, emprego irregular de verbas ou rendas públicas, concussão, corrupção passiva, facilitação de contrabando ou descaminho, prevaricação, condescendência criminosa, advocacia administrativa, exploração de prestígio, corrupção ativa e outros dispositivos versando sobre o leque da corrupção. Pela decisão a ser encaminhada à Mesa do Senado, ao Estado caberá provar que o servidor acumulou bens de forma ilegal, fato a ser investigado a partir da declaração de bens do agente público, que ele apresenta ao tomar posse e atualiza anualmente.
O fato é que, em meio a mais uma onda de denúncias de corrupção a serem apuradas no âmbito da CPI mista - agrupando, desta feita, tráfico de influência, fraude em licitações, formação de quadrilha, entre outros crimes -, o País continua a buscar as melhores formas para combater essa mazela, que é uma das mais corrosivas do tecido institucional. Basta lembrar que a soma alcançada pela corrupção é estimada em cerca de R$ 70 bilhões, correspondendo a mais de 2,5% do produto interno bruto. Fossem investidos em educação, veríamos um salto de quase 50% das matrículas do ensino fundamental, chegando a 52 milhões, o dobro de leitos em hospitais públicos, restritos a 370 mil, e a construção de cerca de 3 milhões de moradias. Há uma consciência generalizada de que a sensível diminuição do PNBC - o produto nacional bruto da corrupção - implicará efetiva expansão do índice global de felicidade coletiva, que se poderia constatar pelo alargamento das fronteiras assistidas por programas de saúde, educação, mobilidade urbana, segurança, moradias, saneamento básico.
A criação de mecanismos para combate direto às franjas da corrupção tem vital importância. Mas a estratégia da criminalização do enriquecimento ilícito poderá ser inócua ou não oferecer resultados satisfatórios se não abranger a bateria de causas que aciona a engrenagem de corruptos e corruptores. Vejamos como o pano de fundo que acolhe o alfabeto da corrupção é mal alinhavado. O Estado brasileiro abusa do poder discricionário. Nos corredores dos edifícios públicos montou-se gigantesca máquina burocrática - quase sempre focada no lema “criar dificuldades para obter facilidades” - na qual se avolumam restrições às atividades comerciais e produtivas, protecionismo e subsídios para uns e regras duras para outros, excesso de imposições de licenças de importação/exportação. Está mais do que provado que economias abertas e antidiscriminatórias limitam as maquinações de “grupos da propina”. Ali a taxa de corrupção é menor.
A política salarial na administração pública também contribui para a expansão das teias corruptoras na medida em que estimula fontes alternativas de renda. Forma-se ambiente favorável à parceria de interesses de grupos privados e administradores da res publica. Abre-se uma janela para o ingresso de agentes da esfera política. E a competição política se torna acirrada, exigindo de candidatos “muita bala” para enfrentar os embates eleitorais. A “munição” costuma sair dos arsenais de empresas que prestam serviços às três instâncias: União, Estados e municípios.
A par desse feixe causal, espraia-se a cultura de impunidade, que se ancora na desigualdade de direitos. A lição de Anacaris, o sábio grego, vem à tona: “As leis são como teias de aranha, os pequenos insetos prendem-se nelas, os grandes rasgam-nas sem esforço”. Portanto, a corrupção, cujos efeitos impactam o crescimento econômico, o desenvolvimento social, a competitividade empresarial, a legitimidade dos governos e a própria essência do Estado, é um cancro que precisa ser combatido de maneira sistêmica. Atacar seus efeitos, fechando os olhos para as causas, significa perpetuar o Brasil do eterno retorno.
Emerge, portanto, a equação das reformas em algumas frentes, a começar pela via administrativa com a implantação da meritocracia. Auditorias públicas com fiscais concursados, ao lado do TCU, se fazem necessárias para fazer varreduras constantes. A sociedade civil, por meio de entidades sérias, ajustaria o foco da lupa. Só assim a conduta ética e o padrão moral haveriam de semear a administração pública.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato