A vida tem dessas coisas. Parece às vezes que a gente já viveu tudo. Já doou parte de seus dias, pregou a mensagem até no deserto, caminhou mundos e fundos, entregou-se como se mais tempo não houvesse, amou os que ninguém amava.
Você diz coisas fortes, fala verdades. Prega a igualdade. Questiona as leis vigentes. Enfrenta a religiosidade hipócrita. Visita os pobres, acarinha os desprezados pelo poder vigente. Pratica sua mensagem até a última gota.
Arranjou adversários e inimigos. Gente que não gostou de suas palavras e gestos. Você continua a pregar, não deixa de dizer o que pensa. Espreitam-no na esquina, deixam recados por terceiros. Você começa a sentir algum medo. É preciso fazer-se acompanhar pelos amigos mais chegados, cuidar os passos, eventualmente até esconder-se.
Você não é tão novo nem tão velho, mas sente que o dia derradeiro está chegando. Resolve reunir os amigos mais amigos, aqueles aos quais você transmitiu suas verdades mais verdadeiras e a quem abriu de fato seu coração, a quem você pediu para continuarem sua estrada. Você lhes diz que sua hora está aí, na porta, não mais no horizonte. Oferece-lhes a última comida, a última bebida, abençoa e partilha com todos e todas o que há para comer e beber, distribui suas últimas palavras, desejos e sonhos. Pede que não o esqueçam nem abandonem.
Eles, os que não gostam de você, os que não aprovam suas ideias, os que sentem seus privilégios atingidos, o prendem na esquina, na beira de um bosque. Fazem um julgamento de fachada atrás de umas árvores, julgam-no culpado por todos os problemas do mundo. Tentam desmoralizá-lo com calúnias e mentiras. Dizem que você disse ser o salvador da pátria, o redentor de todos os pecados, o julgador de todas as injustiças. Resolvem executá-lo. Jogam seu corpo em cima de um monte de palha, à luz da rua, para que todos e todas saibam que você, renegado, rebelde, insubmisso eterno, está morto, definitivamente morto. Que ninguém vá atrás de você, ninguém o procure nunca mais, tenha a coerência e a hombridade de dizer que foi seu amigo e companheiro ou, muito menos, tenha a coragem de assumir e seguir suas ideias.
Mas você não pode morrer definitivamente ou para sempre. Alguém precisa lembrar-se de suas pregações. Afinal, você não passou pelo mundo para ser um pobre desgraçado morto de quem não se fala mais, que não deixou nada registrado por escrito ou de alguma outra forma. Uma meia dúzia de medrosos, aqueles de sua última janta, anda se esquivando pelas vielas e nas quebradas da noite com medo de aparecer e assumir publicamente que moraram contigo, passearam contigo pelas coxilhas, percorreram favelas, enfrentaram os hipócritas dos templos, confrontaram a teu lado os poderosos de ocasião, beberam tuas palavras, te amaram. Você precisa reaparecer, ser de novo reconhecido, alguém precisa continuar seus passos, trilhar seus caminhos.
Mas quem, quem o fará? Quem terá vergonha na cara e coragem?
Uma mulher, sim, uma mulher terá coragem para proclamar que viu seu corpo, que você continua vivo, e que é preciso seguir em frente, reunir de novo os mais amigos dos amigos, para que cada um deles reúna seus amigos mais amigos, e aí já são dezenas, mais os mais amigos dos mais amigos deles, e aí serão centenas, daqui a pouco milhares ou milhões.
Você está vivo, sua vida não foi em vão. Suas ideias de um mundo justo, de igualdade, de um Reino onde todos e todas são irmãos irmãs, companheiros e companheiras, de um Reino onde a liberdade terá a última palavra, o amor estará acima de tudo não foi enterrado, sepultado, não foi crucificado. A vida continua, assim como o sonho que você plantou. Sua passagem pelo mundo não foi em vão.
*Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República