Não se faz um Lula todos os dias. Não acontecem Lulas a qualquer hora.
Todas e todos temos duzentas mil histórias sobre Lula, mesmo os que não gostam dele ou dele divergem de forma mais ou menos profunda, direta e indiretamente. Ou o conhecemos pessoalmente, ou o encontramos aqui ou acolá, num comício, na boca de urna e no voto, nas greves e mobilizações sociais, nas entrevistas e debates públicos, ou porque beneficiários das políticas de seus dois governos. Por isso tudo e mais um pouco, permitam-me um depoimento pessoal.
Conheci Lula no II Encontro da ANAMPOS – Articulação Nacional de Movimentos Populares e Sindicais, (quando, aliás, também conheci Frei Betto), acontecido no Instituto Paulo VI em Taboão da Serra, São Paulo, em 1981. Fomos eu, João Pedro Stédile, Walter Irber e Olívio Dutra do Rio Grande do Sul (viajamos de ônibus, eram outros tempos). O Encontro estava programado para ser no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, que sofrera intervenção dias antes, por mais uma greve dos metalúrgicos liderada por Lula. A ANAMPOS fez seu primeiro encontro em João Monlevade, MG. Reunia, ineditamente, dirigentes sindicais combativos, lideranças de movimentos populares urbanos e rurais e de pastorais, num esforço de diálogo entre setores populares de luta que quase não se encontravam, mas que, em tempos de ditadura, faziam trabalho de base, vinham da luta social autêntica, da educação popular freireana e precisavam organizar-se nacionalmente. Estava surgindo o Partido dos Trabalhadores e a partir das reuniões e reflexões da ANAMPOS surgiram a CUT em 1983 e, mais tarde, a Central de Movimentos Populares (CMP).
Mas na verdade conheci Lula antes, como morador da Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre, onde organizamos um Fundo de Greve de apoio às greves dos metalúrgicos do ABC, fundamos o primeiro Núcleo de Base do PT e organizamos a Oposição Sindical dos trabalhadores da Construção Civil, a partir de uma grande greve em 1979 e à luz das lutas do ABC paulista.
Lula foi-se se tornando alguém de casa e cozinha para muitos de nós, líder sindical respeitado por sua coragem, pela capacidade de liderança e por acreditar que a organização levaria os trabalhadores à transformação do Brasil, superando o peleguismo sindical então reinante.
Ao longo do tempo e da vida, nestes mais de trinta anos, foram inúmeros os contados e de diferentes formas Como por exemplo, os Comícios das Diretas-Já, em Porto Alegre, onde eu representava a Pastoral Operária. Depois, deputado estadual constituinte, comi um churrasco,num apartamento em Brasília, onde três constituintes federais moravam juntos: Lula, Olívio Dutra e o hoje Senador Paulo Renato Paim. Ou as inúmeras campanhas a prefeito em Porto Alegre, especialmente a primeira vitoriosa, Olívio Dutra prefeito em 1988, com as grandes caminhadas às sextas-feiras pelas ruas de Porto Alegre. Ou a memorável campanha de 1989, da qual fui Coordenador Geral no Rio Grande do Sul, quando, pela história política de Brizola, Lula fez 6% dos votos dos gaúchos no primeiro turno e, com apoio de Brizola, acachapantes 60 e tantos por cento no segundo. Ou no início dos anos 90, eu presidente estadual do PT/RS, levando Lula e Olívio Dutra no meu Passat velho para os altos do morro Santa Teresa em Porto Alegre para uma entrevista na TV Educativa, o Passat quase não subindo o morro e Lula reclamando de como um partido que queria ser grande nem ao menos carro decente tinha.
Ou as Caravanas da Cidadania, nos anos 90, jornadas por todo Rio Grande (e Brasil). E, por artes do destino e do inesperado, depois da grande vitória em 2002, Frei Betto, nomeado Assessor Especial de Mobilização Social do presidente eleito, convida um grupo de educadores populares, entre os quais eu, para ajudar na mobilização social e educação popular das famílias beneficiadas pelo Programa Fome Zero. Frei Betto sai do governo e acabo Assessor Especial do Presidente por seis anos.
Lula tem pelo menos duas grandes virtudes, e entre tantas qualidades, que sempre me chamaram a atenção.
Lula sempre soube ver na frente, sempre soube antecipar-se aos fatos. Foi assim com as greves do ABC, ainda nos anos setenta, em meio à ditadura, quando vislumbrou o enfraquecimento do regime, a possibilidade da abertura democrática, combinados com o empobrecimento dos trabalhadores. E, a partir da vivência, da prática e da realidade, enxergou a necessidade e o espaço para criar um partido dos trabalhadores. Ou a importância da formação política dos trabalhadores. O Sindicato dos Metalúrgicos sempre teve processos organizados de formação, com participação de, por exemplo, Frei Betto e do ex-ministro Paulo Vannucchi. Mais tarde, a criação do Instituto Cajamar e depois do Instituto Cidadania. Assim foi a proposta do Fome Zero no início do seu governo, a aposta na candidatura Dilma, mulher, gestora competente, nova eleitoralmente. Ou, agora, como ex-presidente, com os olhos voltados especialmente para a América Latina e África.
Lula sempre teve e demonstrou um amor entranhado, primeiro e preferencial, pelos pobres,pelos fracos e oprimidos. A falta de um emprego, a ausência de salário, não ter comida para pôr na mesa, a fome, as condições de vida dos trabalhadores sempre forram seu indicador maior, seu norte. São inúmeros fatos, as histórias na sua trajetória de dirigente sindical, de dirigente político, de presidente. Como quando, por exemplo, depois de muita insistência de seu Chefe de Gabinete, Gilberto Carvalho, cancelou todas as audiências para cumprimentar e falar longamente com os hansenianos, que jamais tinham sido atendidos por ninguém, muito menos por um chefe de governo. Ou dos catadores e moradores de rua, com quem se encontra todos os anos em São Paulo dias antes do Natal.
Por isso, quando esta semana, na abertura da IV Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional em Salvador, Bahia, o presidente do CONSEA, Renato Maluf, e no encerramento o ministro Gilberto Carvalho mencionaram o nome de Lula, os mais de dois mil delegados e presentes se levantaram e começaram a cantar em coro e emocionadamente o Lula-Lá de 89, que nunca mais esqueceram e nunca mais esquecerão.
*Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República