Uma das razões por que o ensino popular, atualmente, suscita algum interesse nos círculos de influência da sociedade brasileira é a falta de competência profissional de técnicos ou serviços gerais.
A incompetência em outros escalões também suscita inquietude, e não só nos círculos de influência — mas esse é outro assunto... Fato é que a produção e o comércio exigem hoje pessoas mais qualificadas tecnicamente. A inclusão digital, por exemplo, é uma das respostas que se tentam dar à demanda modificada pela revolução cibernética.
Não tenho nada contra a inclusão digital, antes, pelo contrário. Porém, nossa sociedade e a humanidade inteira precisam de algo mais fundamental. O ser humano não pode ser reduzido a fator de produção. Seu valor está em sua pessoa, em sua liberdade e em sua capacidade de assumir suas condições existenciais. Foi essa a mensagem do papa João Paulo II na encíclica ‘Laborem Exercens’.
Decerto, entre as exigências vitais está a participação na produção do bem-estar comum. Porém, o ser humano não pode ser considerado como mero fator de produção, espécie de escravo, ainda que altamente qualificado e formado no melhor centro tecnológico do mundo. É chamado a decidir pessoalmente, em liberdade, diante das opções que a vida lhe propõe, para assim realizar sua personalidade, numa interação pessoalmente assumida junto à sociedade. Para isso, ele precisa de uma formação adequada em muitas dimensões, como já escrevemos em outra oportunidade: de formação humana integral.
Pensando no Ensino Público Fundamental , que atinge as classes mais amplas do povo, tal formação humana integral não pode estar diretamente em função da mera qualificação técnica ou funcional (‘para o mercado’). Não aquilo que o/a adolescente poderá fazer, mas aquilo que ele/ela será (ou poderia ser) deve constituir a finalidade da formação. Não a qualificação, mas a qualidade da pessoa.
Vivendo a meio caminho entre Ouro Preto e Diamantina, gosto de falar, não em qualificação, mas em ‘aquilatação’. Como no ouro e nos diamantes, não é tanto a função operacional, mas o quilate da pessoa que importa, toda a sua substância, tudo o que ela é. Com pessoas de baixa qualidade não se faz uma sociedade valiosa. Antes, será como aquelas calças jeans que parecem sólidas, mas no primeiro movimento brusco revelam a má qualidade das costuras... Para construir uma sociedade sólida não basta fazer projetos mirabolantes. Importa ter elementos sólidos – tijolos, vigas... –, para que não aconteça o que está acontecendo com os edifícios em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo...
Para termos essas pessoas de qualidade, em todos os setores da população, precisamos de ‘escolas de humanidade’, nas quais sejam tematizadas e instruídas, expressamente, as possibilidades e exigências de um ser humano mais pleno, mais harmonioso, mais responsável e – antes de tudo isso – mais perceptivo. Pois a humanização começa com a percepção da realidade. É estonteadora a falta de percepção das pessoas: do motoqueiro que não percebe o perigo que ele corre e causa, do jovem sentado no banco dos idosos no metrô sem se importar, da faxineira que não enxerga o pó sobre os móveis, do lojista cujo aparelho de cupom fiscal está sempre com defeito, do executivo político que não percebe a injustiça que comete desviando verbas e privilegiando seus comparsas.
E aí surge outro assunto: não se deve ensinar apenas conhecimento feito e empacotado, mas comportamento, atitude e – desculpe o termo fora de moda – virtude. Pois ‘virtus’, em latim (a mãe do português), significa força, energia, preparo para pôr em prática aquilo que a percepção bem educada por assim dizer, ‘coloca em pauta’. Escolas onde se desenvolva a percepção e se treine a virtude, eis o verdadeiro ‘construtivismo’.
*Johan Konings é Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina