Há um debate na França, capitaneado pelos dois principais candidatos à Presidência da República, que merece reflexão também no Brasil. Digo que, de plano, parece uma tolice, mas é uma daquelas tolices que escondem uma profunda gravidade social e política.
O socialista François Hollande propõe que se exclua a palavra “raça” do texto constitucional francês. O termo daria ensejo a estereótipos e, com eles, a preconceitos. Nicolas Sarkosy, candidato à reeleição pelo partido União por um Movimento Popular, acha isso ridículo. Acabar com a palavra não levará a uma mudança nos costumes e ainda permitirá um retrocesso na política antirracista.
À primeira vista, Sarkosy parece ter razão. Há tantas coisas mais importantes na agenda política, que a proposta soa meio patética mesmo. Mas o ouvido como a rapidez da impressão às vezes engana.
O termo “raça” não tem um substrato biológico que lhe dê vida semântica. Só existe uma raça com o cariótipo humano. Nem a cor da pele nem a origem étnica lhe imprimem diferença. Há, entretanto, o “racismo”, ideologia e política que se valem desses dois caracteres para diferenciar os seres humanos com o intuito de discriminar.
A discriminação sempre foi usada em sentido negativo para oferecer tratamento jurídico privilegiado a certos grupos em detrimento de outros, com base em tais aspectos sob alegada tese de superioridade de uns sobre outros. O movimento negro ou, agora por força do DPC, afrodescendente norte-americano passou a reivindicar outro tipo de discriminação chamada de positiva, afirmativa ou ainda reversa. O instrumento principal dessa forma de discriminação são as políticas de cotas.
Sem o mesmo contexto sociológico dos Estados Unidos, muitos países importaram a solução antirracista, mitigando a literalidade do que dispõem suas Constituições sobre a igualdade racial: não haver discriminação com base na raça. Passou a haver dois tipos de discriminação, portanto: uma social, porém juridicamente vedada; outra política, todavia, promovida pelo direito.
Sarkosy é conhecido, dentre outras coisas, pelo seu apego ao imediatismo pragmático: se foi criada a correção de rumos pelo direito, para que mexer no que está dando certo? Não enxerga que, como dizem ainda os mitólogos e místicos, as palavras têm poder. Não o poder sobrenatural em que eles acreditam, mas o de manter vivos no imaginário social preconceitos nefastos.
Em vez de raça, devemos pensar numa cultura da diferença baseada na diversidade, sem admitir os ecos dos estereótipos. Termos como “raça” devem ser abolidos do vocabulário jurídico, não para homogeneizar o que é diverso, mas exatamente para promover a cultura do pluralismo. Não é uma tarefa para a premência do hoje, mas, se não começar agora, continuará a sobreviver com a sua sutil perversidade.
*José Adércio Leite Sampaio é Jurista