O termo é usado a torto e a direito, de acordo com as conveniências do interlocutor, nem sempre correspondendo à complexidade conceitual que efetivamente abriga, com base no conceito, formulado por Gramsci, de que hegemonia implica transformar ideologia e plataforma política de uma classe em escopo de uma era. No nosso cardápio cotidiano, a expressão “projeto hegemônico” reduz-se à ideia de amarrar um partido político ao tronco da perpetuação de poder. O exemplo a que se recorre é o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que, ao controlar a máquina pública do México por 71 anos - de 1929 a 2000 -, foi guindado à posição de descobridor da “ditadura perfeita” por passar uma “eternidade” no poder sem golpes, participando de eleições periódicas e sob o pluripartidarismo.
No momento em que, por aqui, se formam alianças partidárias em torno do pleito municipal de outubro próximo, a polêmica sobre hegemonia volta à tona. O alvo do tiroteio é o PT, cuja meta de eleger o maior número de prefeitos, a partir das capitais e das grandes e médias cidades, acirra os ânimos de parceiros governistas, que o acusam de engendrar um projeto de domínio de longa duração.
Se a efetiva intenção petista é mesmo a de alargar os espaços municipais e estaduais para garantir o domínio sobre o imenso território federal (meta, aliás, comum aos partidos), precisa avaliar o risco de implementar a estratégia deixando aliados a ver navios. A estratégia de expansão de uma sigla tem que ver com a meta finalista dos atores políticos: conquistar o poder onde ele estiver. Chegar sozinho à direção do País é praticamente impossível na modelagem do chamado presidencialismo de coalizão. Por conseguinte, um partido deve abrir um olho para se ver e outro para enxergar os parceiros.
A concepção de que um único partido pode dominar a cena e intervir em todos os momentos da vida social e política, abrindo fronteiras nas camadas da população, é do velho Lenin e não condiz com os nossos tempos. A coerção, outro eixo da carroça hegemônica, não funciona mais. A esfera política, em todos os quadrantes, é plasmada pela expressão dos contrários. A contestação emerge até mesmo nas ditaduras (poucas) contemporâneas. Portanto, a ambição de um partido de tomar conta de todos os espaços, por uma infinidade de tempo, esbarra nos interesses da multifacetada cadeia partidária. Se os parceiros se sentirem excluídos do banquete, acabarão por se afastar da mesa em que permanecem sob desconforto.
Sob o ponto de vista ideológico, um projeto hegemônico é ainda mais complexo. Perguntas-chave: que ideologia deve compor a plataforma política? Que classe influenciará as outras? Como se recorda, Gramsci pregava a hegemonia de uma classe, à qual caberia o papel de persuadir os outros pilares sociais, constituindo-se, ela mesma, em síntese da coletividade.
Ora, o mundo mudou seus paradigmas. A arquitetura socialista desmoronou na onda do tsunami das economias abertas ao capital, cedendo lugar às alavancas da privatização de empresas, da concessão dos serviços públicos e da desregulamentação das relações de trabalho. Floresceu um ideário social-democrata, juntando vetores do velho socialismo e vertentes do mercado, cuja imagem, hoje meio borrada, mostra o Welfare State (o Estado de Bem-Estar), com seus programas de segurança do emprego, direitos da cidadania, justiça e integração social. Se alguém quiser identificar traços de hegemonia ideológica, enxerga a social-democracia, na qual se distinguem matizes de um bloco conservador, à direita, e sinais de um núcleo avançado, à esquerda. Não há fortes diferenças na moldura governativa de 24 Estados - oito governados pelo PSDB, seis pelo PSB, cinco pelo PMDB e cinco pelo PT.
No compartimento da hegemonia de classe, a impressão é de que se vê mais um retrato bolorento, dos tempos em que o planeta dava os primeiros passos na era industrial. A ditadura do proletariado, pensada por Lenin, e retomada por Gramsci, que inseriu a classe operária no patamar hegemônico, é figura aposentada na gramática política.
Vejamos o Brasil de hoje.
A classe C, chamada de nova classe média, abriga 95 milhões de brasileiros, detém 46,24% do poder de compra e é a maior do ponto de vista eleitoral e econômico. Mas não detém hegemonia de pensamento e sua influência é tênue. Nossa composição social é uma polifonia de vozes, ideias e sentimentos, embalados em costumes, tradições e culturas regionais. Somos uma sociedade que preza valores de convivência, harmonia, justiça e solidariedade. Radicalismos não criam raízes em nossa índole. Projeto sectário, que alimente polêmica ou provoque dissensão entre camadas sociais, soçobrará. Partidos nanicos até podem bater na tecla da luta de classes. Fazem seu papel. Não aumentam um palmo à sua altura quando vestem a indumentária da revolução industrial.
Incompreensível, isso sim, é o fato de um grande partido, como o PT, vir a público para tentar vender quinquilharias do arco da velha: a luta de pobres contra ricos, a defesa da supremacia socialista, a hegemonia da classe operária. Verbos em excesso não combinam com ações de menos. Traços de opulência agridem o desfile dos excluídos, que ainda existem. O olho do povo capta engodos. Todo o cuidado é pouco na construção de um projeto hegemônico. De partido, ideologia ou classe.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato